Rio Grande do Norte, quarta-feira, 24 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 20 de dezembro de 2010

Até que a luz nos leve

postado por Mario Rasec

O que chama a atenção da cena do black metal norueguês no início dos anos 1990 é sua riqueza cultural, a ideologia dos seus precursores e as tragédias que culminaram disso. O documentário Até que a luz nos leve (Until the Light Takes Us, 2008) oferece um olhar que não se limita apenas a cena musical, mas expande esse olhar pelas ramificações que essa vertente obscura do heavy metal fez ao se difundir nas artes visuais e na ideologia nacionalista, numa riqueza estética que é imitada e explorada até hoje.

O documentário dá voz aqueles que fizeram parte da cena do black metal norueguês. Dentre eles Varg Vikernes do Burzum e Fenriz do Darkthrone, membros de duas das bandas que, junto com o Mayhem, foram os precursores de um movimento que tomou proporções inesperadas por causa dos seus excessos, da sua violência e das suas tragédias. Varg é entrevistado da cadeia onde está preso desde que foi condenado pela morte de Øystein Aarseth, mais conhecido por Euronymous, membro da banda Mayhem.

Expondo sua versão dos fatos com clareza e segurança, ele oferece no seu relato uma visão esclarecedora dos acontecimentos e das justificativas para diversos atos criminosos que deram a repercussão que tem hoje a cena do black metal em seu país, alem de justificar, de forma igualmente lúcida, o estilo musical que os diferenciava de todas as outras bandas de black metal.

Fazendo parte de uma cena assumidamente underground, o black metal desse país provavelmente nunca teria tanta repercussão mundial se não fossem os atentados as igrejas cristãs e o brutal assassinato de um dos membros desse grupo de amigos que promoviam esses atentados. Grupo esse que se reunia numa loja de discos chamada Helvete, e que seriam chamados de Inner Circle.
Varg não era satanista, pois isso seria contra seus princípios que repudiavam a cultura judaico-cristã. Afinal, a dualidade Deus/Satã é um elemento dessa cultura que ele pretendia, junto com os membros do Inner Circle, retirar do seu meio. Mesmo assim, ele foi tachado precipitadamente de satanista por uma imprensa que buscava fazer dele um adorador do diabo para entreter o público numa espécie de novela jornalística, onde o bem e o mal estavam bem definidos, e não levando em conta as reais motivações do Inner Circle. Entretanto, Varg tem nesse documentário a oportunidade que a imprensa lhe negou na época de expor seus ideais e tentar justificar suas polêmicas ações. Segundo ele, a queima das igrejas cristãs se justificava por uma defesa, mesmo que extremada, das raízes da cultura local. Afinal, a própria igreja cristã havia destruído os templos das divindades do povo norueguês (onde Thor, Frey e Odin são as principais) e construído igrejas sobre os locais de culto. Para Varg essa defesa à sua terra não se limita apenas ao campo religioso. Ele relata também o ataque a uma das lanchonetes da empresa norte-americana McDonald’s por ele e seus amigos, mostrando assim repúdio à invasora cultura norte-americana em seu país. O documentário também permite que ele relate sua versão do assassinato de Euronymous. Assim como expõe comentários de alguns entrevistados a respeito de outros assassinatos cometidos na época, expondo dessa forma o lado assumidamente homofóbico de alguns que viveram o extremismo daquela época.

Entretanto, esse casamento entre arte e violência gerou, a meu ver, o germe para outra questão: A necessidade de uma discussão sobre os valores de uma arte autêntica e maldita. Pois, na terra de Edvard Munch, podemos ver, através de um movimento underground que foi o black metal, a união entre arte, vida e morte, num comportamento genuinamente artístico. Afinal, os membros dessas bandas viviam intensamente a sua arte. Houve extremismos, violência e intolerância. Contudo, não defendo aqui os violentos excessos que eles cometeram, mas, por outro lado, eles ensinaram que a arte pode ser muito mais do que uma simples questão de mercado. Pode ser uma atitude numa contemporaneidade carente de atitudes genuínas onde quem dita as regras é o mercado através de uma mídia que não tem interesse em profundidades artísticas, mas no lucro rápido e fácil. Todos aqueles que fizeram parte da cena do black metal norueguês daquela época mostraram uma ideologia forte, baseada no seu paganismo e na defesa cultural do seu território, elementos estes que alicerçaram sua arte. Entretanto, o que vemos hoje é uma sucessão de modismos que já nascem na fraqueza de falsos e afetados idealismos, ou na falta de um. Os membros do black metal norueguês deram continuidade, através da música, o que Edvard Munch começou com suas pinturas. Mostraram a obscuridade do mundo, a estética da tragédia, e a inconformidade contra uma sociedade hipócrita.

Talvez o que falta na arte, com exceção de alguns raros e celebres exemplos, seja justamente esse aspecto de revolta. Afinal, muitos artistas, não somente na música como em diversas áreas da expressão artística, têm esquecido que, essencialmente, a arte é conflito, inconformismo e polêmica.

Mario Rasec

Designer gráfico, artista visual, ilustrador e roteirista de HQs. Autor de Os Black (quadrinho de humor) e de outras publicações.

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