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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 13 de fevereiro de 2012

O Caderno Rosa de Lori Lamby (Hilda Hilst)

postado por Uiara Nunes

O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990) é um livro polêmico, obsceno, repugnante, crítico, engraçado. Como a própria Hilda Hilst o descreve, “é um ato de agressão, não é um livro, é uma banana”. Se alguns acreditaram que a autora estava louca por publicar uma obra tão diferente daquelas que vinha escrevendo, o tempo provou que ela, na verdade, estava mais lúcida do que nunca. Com o Caderno Rosa, primeiro livro de sua tetralogia obscena, seguido por “Contos d’escárnio. Textos Grotescos”, “Cartas de um sedutor” e “Bufólicas”, Hilda Hilst alcançou seu objetivo primeiro. Qual seria esse objetivo? Ser lida.

Hilda Hilst (1930-2004), escritora paulista ganhadora de vários prêmios literários, apesar de ser comparada com os maiores escritores da literatura brasileira, sempre fora lida quase que exclusivamente no meio acadêmico. Seus livros tinham tiragens pequenas e ela era pouco conhecida no país. Com o intento de disseminar sua obra pelo mercado editorial, Hilda lança uma tetralogia pornográfica. Causando polêmica e decepção em alguns críticos e leitores, Hilda conseguiu, sem perder a maestria, ser foco da atenção midiática, vender em grande escala e ter sua primeira obra traduzida para outro idioma. Não sem dar, obviamente, sua ferroada.

O Caderno Rosa de Lori Lamby trata-se de um diário de uma menina de oito anos que, aparentemente, agenciada pelos próprios pais e de bom grado, passa por experiências sexuais em troca de presentes. Lori adora dinheiro, a cor rosa e quer comprar todas as coisas da “Xoxa”. Chega ao cúmulo de masturbar-se com uma nota de dinheiro e descrever a cena para o “tio Abel”, um dos homens que a visita: “eu peguei uma nota de dinheiro que a mamãe me deu e passei a nota na minha xiquinha, e sabe que eu fiquei tão molhadinha como na hora que o senhor me lambe?”¹. Lori, para o nosso estarrecimento, “é também naturalmente disposta para a bandalheira”². Mas seu linguajar infantil, construído de maneira genial por Hilda Hilst, cheio de afetação, diminutivos e dúvidas relativas à escrita e ao vocabulário, não deixa de ser cômico. É assim que a autora nos faz chegar ao absurdo, que é rir de um crime como a pedofilia. Apesar disso, não devemos nos deixar levar pelo pudor. Ainda precisamos entender a razão de tamanha agressão da escritora. E mais: o seu alvo.

Em paralelo à libertinagem, ficamos sabendo através da protagonista que seu pai é um escritor, um gênio, mas que enfrenta problemas financeiros e de ordem literária. Seu editor, sugestivamente chamado Lalau, o faz escrever “bandalheiras” (entenda-se pornografia), para que assim seja mais vendido, o que desencadeia um forte conflito de consciência no escritor – “eu quero morrer, eu quero o 38, onde é que tá?”. Assim, relatando os conflitos familiares que a envolve, Lori se pergunta: “Por que será que não dão dinheiro pro papi que é tão gênio, e pra mim eles dão só dizendo que sou uma cachorrinha?”. É aí que chegamos ao ponto fulcral da obra.

Optando, ela própria, por criar uma obra obscena para ser mais vendida, Hilda Hilst desvenda aquilo que ela também vê como obsceno: a subjugação da literatura ao mercado editorial. “A transformação da arte em mercadoria (…): no livro, o valor não reside na qualidade de criação, mas na sua entrega à quantidade de venda”². É por isso que o pai de Lori está sempre em crise e em pé de guerra com Lalau, “que é quem faz na máquina o livro dele”¹. Por isso também que a prateleira de seus escritos chama-se “bosta”. Dessa maneira, Hilda se curva à regra, mas é certeira ao atingir a figura do editor (e a nossa, na medida em que só queremos comprar “bandalheiras”), baixando o ato de mercantilizar a obra literária a um patamar tão vil quanto o diário obsceno de uma menina de oito anos.

A simplicidade de O Caderno Rosa de Lori Lamby é apenas aparente. Por trás da linguagem infantil de Lori, há a crítica ferrenha ao mercado editorial, ao nosso consumismo extremado, e entre outras coisas. Além disso, é um trabalho meticuloso com a língua e uma elaborada combinação de gêneros² (junta-se diário, cartas, contos, relatos, fábulas, etc.). E se por um lado, é uma obra que choca, por outro, é capaz de render boas gargalhadas. De maneira sarcástica, Hilda comenta o livro: é “uma brincadeira que eu considero de muito bom gosto (…) eu espero que dessa vez me leiam”. Então, leitor, não deixe de conhecer a “bandalheira” de Hilda Hilst.

 

1 HILST, Hilda. O Caderno Rosa de Lori Lamby. 2 ed. São Paulo: Globo, 2005.

2 PÉCORA, Alcir. Nota do Organizador. Em: O Caderno Rosa de Lori Lamby. 2ª ed. São Paulo: Globo, 2005.

 

Imagem: banco de imagens Google

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Uiara Nunes

Uiara Nunes estuda literatura, é colunista e integrante do conselho editorial da Carta Potiguar. E-mail: uiaranunes@gmail.com

2 Responses

  1. Dyego disse:

    Uau, eu tenho minhas reservas com a Hilst, mas esse livro parece que com a metalinguagem consegue fazer a gente rir de si mesmos, o que é bom, a tal Catarse, acho.

  2. Uiara Nunes disse:

    Dyego, tem partes muito engraçadas mesmo, rsrrs. E não é só a metalinguagem, é a linguagem de Lori, as estórias que permeiam o livro, é a bandalheira. Acho que vc iria gostar muito (iria conter algumas lágrimas de riso também, hehehe). 🙂

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