Rio Grande do Norte, quarta-feira, 24 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 17 de fevereiro de 2012

Cidadania confiscada

postado por Carta Potiguar

Por Paulo Linhares, Professor da UERN

 

Em recente artigo focalizei a momentosa questão, ainda pouco visitada, da crescente precarização do direito, após uma era de grande florescimento da várias gerações de direitos humanos fundamentais conhecidos, abrangendo desde aqueles de cunho individual e referidos às liberdades civis, até aqueles de caráter supraindividual que versam sobre interesses de indivíduos indeterminados e indetermináveis – os interesses difusos – e referidos à atualíssima demanda social pela qualidade de vida que se desdobra em direitos fundamentais ao desenvolvimento, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à comunicação e informação, à paz e segurança, ao patrimônio comum da humanidade, para citar as gerações de direitos fundamentais imaginadas pelo jurista tcheco-francês Karel Vasak.

Após mencionar que a história dos direito humanos tem como marca mais visível a noção de exclusividade, de modo que tais direitos são um apanágio dos socialmente privilegiados, o jurista Etienne-Richard Mbaya pondera que “[…]Com a criação das Nações Unidas e a adoção dos princípios da Carta da ONU, além da Declaração Universal dos Direitos do Homem, entre outros instrumentos internacionais, finalmente foi abandonada, ao menos teoricamente, a ideia da exclusividade dos direitos humanos.” E que “[…] Vivemos, desde 1945, um período de reconhecimento da sua universalidade e inclusividade, sendo, também, um período de reivindicações dos povos no sentido de exercerem o direito à autodeterminação como um direito dos povos e do homem”, para concluir que “[…] O direito à existência, à vida, à integridade física e moral da pessoa e à não-discriminação, em particular a racial, são normas imperativas da comunidade internacional ou da natureza do ius cogens”.

Entretanto, é fato que, depois de um longo período de expansão (que vai do século XXVIII ao século XX), experimentam atônitos um período de regressão, de franco encolhimento de um conjunto de direitos e garantias, em todos os ramos do direito. O mais grave é que a maioria das ações precarizantes dos direitos se revestem excelentes propósito, como é o caso da polêmica Lei da Ficha Limpa. Ora, a corrupção, no Brasil, atingiu patamares alarmantes e se tornou urgente uma resposta da sociedade a esse fato. Claro, a resposta haveria de ser mais política do que jurídica, mas, a reação mais visível foi a ideia de se fazer uma lei que impediria os velhos corruptos de sempre ingressar nos cargos eletivos sob as bênçãos  do cidadão-eleitor. Como? Passando por cima do vetusto princípio da presunção de inocência, de cariz iluminista e enunciado pela primeira vez pelo Marquês de Beccaria. Na prática, de que modo? Permitindo que alguém condenado por um juízo colegiado, mesmo sem trânsito em julgado, seja reputado como inelegível. Na velha Lei Complementar exigia-se que a sentença condenatória transitasse em julgado para gerar a inelegibilidade. Enfim, apesar dos bons propósitos, a Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010 (Lei da Ficha Limpa) pisoteia e restringe alguns direitos fundamentais.

Ocorre que há quase dois anos a Lei da Ficha Limpa esperava por um pronunciamento definitivo do Supremo Tribunal Federal sobre sua constitucionalidade, para ter aplicação. O STF estava dividido diante de dois princípios constitucionais de igual valor: de um lado a questão de moralidade de vida pública e, do outro, a garantia constitucional da presunção de inocência, pela qual o cidadão é considerado como inocente até decisão em contrário da Justiça.  A probidade administrativa e pela moralidade para exercício de mandato, embora menores do que o princípio da presunção da inocência, findaram por prevalecer sobre este.  Finalmente, no último dia 16 de fevereiro de 2012, o STF concluiu o julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade e de uma ação declaratória de constitucionalidade. Pelo placar de 7 votos a favor e 4 contra, a Lei Complementar nº 135/2010 vai ser aplicada em toda sua extensão aos crimes dolosos com penas acima de dois anos, improbidade administrativa, crimes eleitorais que resultem em prisão, entre outros. Isto resultará na inelegibilidade, por oito anos, das pessoas condenadas criminalmente por órgão colegiado (os tribunais). Os dois maiores juristas da Corte, Gilmar Mendes e Celso de Mello, seguidos por Cezar Peluso e Dias Toffoli, se posicionaram contra a lei. A favor, votaram os ministros Ricardo Lewandowski, Carlos Ayres Britto,  Marco Aurélio Mello, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, além de Carmem Lúcia e Rosa Weber.

Todavia, a questão não deve estar encerrada, pois envolve questões constitucionais muito sensíveis, assim bem caracterizadas no voto do presidente do STF, ministro Cezar Peluso, quando afirmou que a Lei da Ficha Limpa é “um confisco de cidadania”. E arremata: “A lei foi feita para reger comportamento futuros então deixa de ser lei e, a meu ver, passa a ser um confisco de cidadania. O Estado retira do cidadão uma parte da sua esfera jurídica de cidadania abstraindo a sua vontade“. Merecem uma boa reflexão estas palavras do ministro Cezar Peluso. E copiosos aplausos..

Carta Potiguar

Conselho Editorial

3 Responses

  1. Américo disse:

    Ouso discordar do nobre Professor. A priori, urge destacar que nenhum princípio é absoluto e, desse modo, o da presunção de inocência não pode – e nem deve – ser encarado como uma fortaleza instransponível, a ponto de servir para acolher situações concretas esdrúxulas, quando aplicado com o máximo de rigor ou, sob outra ótica, de eficácia.

    Exemplo do que quero dizer, são os casos de políticos como Maluf e Jader Barbalho, que entopem o Judiciário de ações civeis e penais contra suas administrações, porém, por inúmeros fatores, ligados ao Judiciário, Executivo e Legislativo, tais processos nunca findam, inviabilizando, desse modo, a condenação desses senhores, que, a pretexto de salvar o princípio da presunção de inocência, lesaram o erário – e continuarão a lesar – enquanto os seus respectivos processos não forem devidamente finalizados – será que serão?

    Então, a sociedade, no seu legítimo direito de exercer a cidadania de forma direta, de forma exemplar, devo dizer, optou por apresentar um projeto que, em tese, pode ser um forte instrumento a salvaguardar o patrimônio público e promover, ainda que não idealmente, uma natural renovação de quadros na política. A decisão soberana do povo foi dada no sentido de optar por um princípio mais valoroso à coletividade do que a abrigar o princípio da presunção de inocência de forma absoluta, em ampla harmonia com a hermenêutica de ponderação dos princípios, que deve balizar a aplicação de normas.

    Ainda, impõe-se destacar que o povo brasileiro, diante da inércia dos Poderes Constituídos, resolveu apostar e correr  o risco de afastar, equivocadamente, um candidato que fora uma única vez condenado em segunda instância, porém, sob a mesma razão, afastará outras centenas de cidadãos que foram condenados não apenas uma, mas várias vezes pelos Tribunais de segundo grau, porém, sobrevivem com seus mandatos e elegibilidade intocados por força e obra de Tribunais Superiores que nunca condenam ninguém, em especial os chamados “poderosos”.

    Portanto, compreendo a nobre preocupação do Professor, porém, lembro que, nesse caso, a limitação ao princípio da presunção de inocência não está servindo para condenar ninguém, mas apenas à limitação de acesso ao exercício de funções públicas de alto relevo, a pretexto de preservar o patrimônio público e, em última instância, a própria sociedade.

    Como o Professor bem sabe, INÚMEROS outros princípios são relativizados e restringidos, em prol do interesse público, como, por exemplo, o próprio direito à vida, que pode ser ceifada pelo Estado em caso de guerra declarada. Cito também o direito à intimidade, que pode ser devassado quando necessário à segurança nacional e preservação da ordem pública (revistas e raios-x em aeroportos, por exemplo).

  2. Estudante disse:

    Excelente artigo!

  3. Leon Karlos Nunes disse:

    Concordo com a perspectiva do artigo. A corrupção deslavada e a falta de perspectivas políticas parece deixar míope a sociedade, acreditando em qualquer medida de cunho moral, crente que reside na corrupção os problemas do país, quando na verdade um Agripino não precisaria ser corrupto para ser a escória do estado; quando a honestidade deixa de ser premissa e vira mérito, muita coisa está errada… o mais incoerente é quem critica a judicialização da política quando o governo busca decretar ilegais greves destes e daqueles setores, mas quando se trata disso, a judicialização da política é algo bom, né? Tá bom………… lamentemos.

Política

Entrevista com Cândido Grzybowski: Privatizações e a Função Social do Estado

Política

O #ForaMicarla e como o discurso dominante constrói algozes!