Rio Grande do Norte, quinta-feira, 25 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 28 de fevereiro de 2012

Resenha: Neve (Orhan Pamuk)

postado por Uiara Nunes

O poeta moderno é um exilado do seu próprio tempo, um “estranho” à sociedade que vislumbra verdades veladas e entrevê a perfeição perdida, o Ideal a ser buscado¹. Ka, protagonista do romance “Neve”, do escritor turco Orhan Pamuk, além de poeta, é também um exilado político.  É nesse duplo exílio, sob o impacto da perfeição simétrica de um floco de neve – “a interminável repetição de um milagre banal” -, que Ka escreve poemas e vê “se desvelar o secreto sentido da vida”². Através do poeta, Ohran Pamuk fala de poesia, da unidade presente nos seres humanos e também de suas diferenças, do Ocidente e do Oriente, do “eu” e do “outro”.

“Neve” conta a história da curta visita de Ka (que, embora turco, morava em Frankf) a Kars, uma pequena e paupérrima cidade da Turquia. A cidade funciona no romance como o “espelho” daquele país, lugar de um complexo processo histórico e de intrincado mosaico ideológico, no qual se chocam curdos separatistas, azerbaijanos, islamitas fundamentalistas, secularistas, socialistas, militares, ateus e outros. Nesse caldeirão cultural, ocorrem, ainda na mesma cidade, o assassinato do prefeito e suicídios enigmáticos de moças que são proibidas de usar o manto na cabeça. Num período de três dias, o mesmo tempo da visita de Ka, a cidade fica ilhada pela neve e um golpe militar é “encenado”. Em vários momentos da narrativa, o limiar entre ficção e realidade é bastante indefinido, tanto em relação ao golpe, que realizado por um ator, já é sugestivo por si só, quanto a fatos que pertencem à não-ficção, como algumas coincidências biográficas entre, Ka, o narrador e o escritor.

A dicotomia Oriente-Ocidente é um conflito evidente na mentalidade turca e, consequentemente, na obra. Nota-se na sociedade turca de hoje o desejo de modernidade, de progresso e de assemelhar-se ao ocidental e ser aceito por ele. Porém, da maneira que essa busca vem sendo feita, além de não legitimar a aceitação pelo outro, a torna humilhante. O turco tem que negar a si mesmo: “para ser um verdadeiro ocidental, a pessoa deve primeiro tornar-se um indivíduo”², ou seja, tomar para si um conceito, o de indivíduo, fundamental na cultura ocidental e abandonar sua tradição, a vida integrada no corpo social. Orhan tenta mostrar que do orgulho ferido surgem o ressentimento, o ódio e o fanatismo – “recuso-me a ser um europeu, e não vou imitá-los feito um macaco” (diz Azul, um terrorista islâmico). No conflito, as pessoas acabam no limbo, divididas entre o nacionalismo extremado e a pura imitação premiada com o desprezo.

Para Orhan Pamuk, o romance teria o poder de fazer o leitor refletir sobre sua própria identidade e também sobre a identidade do outro. “Neve” seria, então, o recurso ao qual o autor recorreu para incitar o povo turco à reflexão, compreensão e reelaboração de sua identidade.  Essa reflexão tornaria possível a aceitação de sua própria cultura e a assimilação da cultura européia, da qual não se pode fugir, criando uma amálgama que não mais desse vazão à imitação nem ao ostracismo. Além disso, o ocidental, por meio da leitura do romance, teria também a oportunidade de compreender melhor o Oriente. “Colocando-nos no lugar dos outros, usando nossa imaginação para abrigar as nossas identidades, somos capazes de nos libertarmos”³, ou seja, de diluir fronteiras entre indivíduos e amenizar conflitos. É também por essa razão que uma pergunta se repete incessantemente em “Neve”: “o simples fato de eu ler estas palavras me garante que eu as entendi?”.

Todo floco de neve, com seu formato hexagonal, é moldado por inúmeras “forças misteriosas” (vento, temperatura, altitude da nuvem etc.). Ka acredita haver similitudes entre cada indivíduo e o floco de neve – “as existências individuais podem parecer idênticas, mas para entender a própria singularidade, sempre misteriosa, basta traçar um mapa dos mistérios do próprio floco de neve”. “Neve” trata, antes de tudo, de pessoas e de poesia, da identidade em crise de um povo. Sim, é um livro que pode ser considerado político mas, de maneira alguma, retém seu mérito apenas nesta característica. Isto é, se é que podemos falar em “mérito” pela mistura de política e arte. Além do valor estético e da profundidade dos temas tratados, a leitura é agradável, flui com facilidade e ainda retrata um  povo  cuja mentalidade é surpreendente, talvez por ser tão diversa da nossa. É um livro que podemos chamar de revelador.

* O escritor Orhan Pamuk foi agraciado com vários prêmios literários. Entre eles está o Nobel de Literatura de 2006.

 

1 SCHILLER, Frederick. On Simple and Sentimental Poetry. Em: The Aesthetical Essays. Disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/6798.

2 PAMUK, Orhan. Neve. Trad. Luciano Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

3 PAMUK, Orhan. In Kars and Frankfurt. In: Other Colors. New York: Alfred A. Knopf, 2007.

 

Título original: Kar (Neve)

Autor: Orhan Pamuk

Tradução: Luciano Vieira Machado

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 656

Ano de lançamento: 2011

Preço sugerido: R$ 62,00

 

 

Uiara Nunes

Uiara Nunes estuda literatura, é colunista e integrante do conselho editorial da Carta Potiguar. E-mail: uiaranunes@gmail.com

2 Responses

  1. Alyson Freire disse:

    Muito boa resenha, Uiara

    O livro parece ser bem interessante e cativante. 

    O que me chamou atenção em sua resenha, foi que o livro parece aportar um clássico e difícil problema da antropologia em seus estudos sobre outras culturas e povos, qual seja: o problema da tradução cultural.

    Compreender outras culturas passa inevitavelmente pela mediação de nossas próprias formas de compreensão, categorias culturais, representações, linguagem, etc.. Apreendemos as diferenças culturais e as traduzimos em termos de nosso próprio vocabulário. Afinal, não podemos entrar na
    pele ou na mente dos outros ou ocupar um lugar neutro. Daí o risco eminente de um etnocentrismo arrogante ou de um relativismo ingênuo. Nem um nem outro contribuem para a compreensão contextualizada e adequada das categorias e formas
    simbólicas de outras culturas sem reduzi-las ora a um particularismo totalmente “outro” ou um a apenas parte de uma totalidade universal, humanidade. Esse problema da tradução cultural está em diversas passagens do livro assinaladas por você. A antropologia tenta resolver essa questão de vários modos, com instrumentos de objetificação da análise (observação participante, entrevistas com informantes), recurso à história, descrições densas e a elaboração do famoso círculo hermenêutico de Clifford Geertz, entre outros. Ou seja, a antropologia dispõe de alternativas em seu próprio patrimônio disciplinar e no da ciência. E a literatura, como resolveria essas questões, quando, me parece, elas não podem ser resolvidas simplesmente no apelo ao gênio do autor? Um problema difícil, o qual os estudiosos da literatura já devem ter se defrontado. Abraços,

  2. Uiara Nunes disse:

     Obrigada, Alyson!

    Esse tema é realmente muito interessante. E acredito que a solução que
    Pamuk propõe é exatamente o romance (gênero literário).  Repetindo a
    afirmação acima do autor: “Colocando-nos no lugar dos outros, usando
    nossa imaginação para abrigar
    as nossas identidades, somos capazes de nos libertarmos”.

    Ou seja, é pela identificação do leitor com os personagens, pela
    descoberta da mentalidade do outro, mas como se esta fosse sua própria
    mentalidade. Quando, no caso de “Neve”, por exemplo, um ocidental lê e
    se identifica com um determinado personagem (oriental), ele também está
    abrigando em si mesmo novos conceitos, novas maneiras de pensar, por
    mais que não concorde com elas. E mesmo não concordando, ele será capaz
    de se aproximar da compreensão. Friso: se “aproximar”, porque o prórpio
    autor se pergunta até que ponto esse leitor compreenderá. Finalmente,
    para Pamuk, esta seria a grande vantagem do romance, frente às outras
    alternativas, na busca da tradução cultural. Abs,

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