Rio Grande do Norte, terça-feira, 23 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 6 de março de 2012

Quem tem medo do Livro Mau?

postado por Chrystal Caratta

A polêmica envolvendo o Dicionário Houaiss (Ed. Objetiva) abre espaço para diversas discussões. O Ministério Público Federal, guardião da ordem jurídica nacional, acusa o dicionário por racismo, alegando que uma das entradas do dicionário (a saber, a entrada “cigano”) fere a dignidade de um povo. Deixo o julgamento do mérito da questão para os juristas e especialistas ‒ que nesses casos sempre surgem dos locais sociais mais inesperados. Menos importante que ser contra ou a favor do pedido do promotor, proponho uma reflexão sobre o que são os dicionários: como, por quem, para quem e por que eles são escritos?

Os dicionários assumem o papel de detentores plenos do saber ortográfico, fonte de consulta incontestável em caso de dúvidas de grafia ou de significado das palavras. A maioria das pessoas que abre um dicionário não se questiona sobre a legitimidade das informações ali contidas por não imaginar que um dicionário é feito por outras pessoas, também humanas e também falíveis. Os lexicógrafos (aqueles que escrevem dicionários), trabalham incessantemente das 8h às 17h, fazem hora extra e estão sujeitos às mesmas intempéries cotidianas e intelectuais que eu e você, leitor.

Um dicionário raramente é escrito por uma só pessoa. Antônio Houaiss, filólogo de importância incontestável no mundo das letras, empresta seu nome e sua credibilidade à obra publicada pela Editora Objetiva, mas há muito tempo não opina ativamente sobre as definições que você lê. Depois da morte do filólogo, em 1999, nossa sociedade presenciou, entre tantas outras mudanças, um boom virtual e uma reforma ortográfica. E quem são os responsáveis por manter os dicionários atualizados?, peço que você se pergunte.

A equipe que trabalha para fazer um dicionário é bastante heterogênea. Há homens, mulheres, linguistas, editores – de texto e de arte –, especialistas, estagiários, diretores comerciais, direitos autorais, público-alvo, a moça do café, você que usa a língua e etc. etc. etc. Todos eles trabalham juntos na tentativa de registrar as acepções das palavras como você, leitor, as usa no dia a dia.

A equipe de redação é quem efetivamente coloca a mão na massa e escreve o que você lê. Como somos muitos, entre linguistas e estagiários, acabamos nos valendo de fórmulas relativamente fixas para elaborar uma definição. Caso contrário, você olharia para um dicionário e entenderia o real significado da expressão “o samba do crioulo doido” (ainda é legítimo eu usar essa expressão sem ofender ninguém?). Há prescrições sobre tudo: do limite de caracteres de uma entrada à ordem dos adjetivos que qualificam um mesmo substantivo, passando pela sequência de transitividade na apresentação de um verbo.

O manual de redação de um bom dicionário contém tantas fórmulas que faria um engenheiro duvidar de que aquilo possa ser categorizado como um material da área de Humanas. Tudo categorizado, classificado e hierarquizado para dar forma a um produto final harmônico que reflita os usos das palavras feitos dentro de um sistema linguístico. Ele é redigido para que os falantes possam conhecer usos que outros falantes fazem de uma mesma língua. Compilando usos, e não costumes, de falantes geograficamente apartados, o Pai dos Burros registra o ponto mais próximo que poderíamos chegar de uma ‘unidade linguística’ dentro de um tempo e de um espaço previamente determinados.

Um dicionário é um instantâneo sociolinguístico. Ao contrário do que parece estar no imaginário social, é uma obra temporal que registra um momento da língua. O primeiro dicionário da Língua Portuguesa*, publicado lá atrás no século XVIII, não daria conta de atender todas as necessidades de um falante hoje. (Se você quiser conferir, ele foi inteiramente digitalizado por alunos e professores da Universidade de São Paulo e pode ser consultado online no site do Instituto de Estudos Brasileiros)

Ao contrário do Ministério Público, guardião da ordem jurídica, um dicionário não é e não pode ter a pretensão de ser o guardião da ordem linguística, ou do “bom escrever” atemporal.  Quem escreve, assim como quem consulta um dicionário, deve estar ciente de que as definições ali apresentadas são um retrato de uma situação circunstancial e momentânea da língua. Assim como a língua, dicionários não são imutáveis. Eles, dicionários e língua, não são dádivas divinas universais. A mutabilidade é uma de suas características intrínsecas, parte integrante da obra que não pode ser vendida separadamente.

É certo que, nesse mito de sociedade racional, cientificista e neutra que vivemos, há de se pisar em ovos ao redigir definições potencialmente sensíveis e problemáticas. Tabus socioculturais serão, com certeza, também tabus linguísticos (Mas é a cultura que reflete a língua ou a língua que reflete a cultura?). É preciso consumir dicionários, ou qualquer outro produto mercadológico ou ideológico que te vendam por aí, com um pouco mais de juízo crítico. Todo produto fruto de trabalho humano reflete a opinião, os valores e as crenças de seu próprio criador, e não valores universais que devem ser acatados e digeridos da forma que te são empurrados goela abaixo.

Se você não concorda com o uso pejorativo de uma palavra, conteste o falante que a usa. Discuta, proponha alternativas. Perceba o preconceito no discurso do outro e levante sua voz contra ele. Pense e faça seus interlocutores pensarem junto com você. Somos nós, os falantes, que, com o uso que fazemos da língua, fornecemos a matéria-prima para o fazer lexicográfico. O dicionário não é preconceituoso. Preconceituosos somos nós.

* BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino. 1712 – 1728.

Fonte da Imagem: Banco de Imagens do Google

Chrystal Caratta

Formada em Letras (Alemão/Português) pela Universidade de São Paulo, com ênfase pessoal e intransferível em Walter Benjamin e Charles Baudelaire. Metida a socióloga e psicanalista, é, na verdade, revisora, editora e tradutora profissional. Entre dormir em estações de trem na Europa e escrever dicionários segundo o novo Acordo Ortográfico, já fez de um tudo nessa vida. Twitter: @lavidamacunaima E-Mail: ccaratta@gmail.com

10 Responses

  1. Allan Patrick Medeiros Lucas disse:

    Hum, eu não entendo como essa postura de passividade vai se refletir numa sociedade melhor.

  2. Chrystal C. disse:

    Eu não entendo exatamente o que você quer dizer com “postura de passividade” e de onde você conseguiu interpretar isso no texto. Quer discorrer?

    • Allan Patrick Medeiros Lucas disse:

      Por que devo levantar minha voz contra os interlocutores e ficar calado em relação ao dicionário?

      • Chrystal C. disse:

        Onde foi que você leu que -eu- acho que você deve ficar calado com relação aos dicionários? – Isso, pelo que eu entendo, não está no texto. É uma inferência sua, que eu respeito. Mas ela é sua, não minha. Você pode, e deve (na minha opinião), levantar sua voz para tudo que você achar injusto, ilegal, imoral ou qualquer coisa que engorde. 

  3. Rafael P. Cabral disse:

    “Somos nós, os falantes, que, com o uso que fazemos da língua, fornecemos a matéria-prima para o fazer lexicográfico. O dicionário não é preconceituoso. Preconceituosos somos nós.”
    Parabéns! Excelente texto.
    Sobre essa tal “postura de passividade”, PASSIVIDADE, SÉRIO?!? Acho que o amigo não compreende o significado da palavra passividade, nem mesmo aquele pobre, contido nos dicionários. Seu texto está incrível, suas palavras foram escolhidas com sabedoria e sua atitude ao externar essas palavras NÃO É PASSIVIDADE! 

  4. Alyson Freire disse:

    Excelente texto, Chrystal, ponderado e preciso nos argumentos.

    Aos que estão polemizando sobre a definição dada pelo Houaiss ao termo “cigano” não custa lembrar a recomendação de um dos maiores filósofos da linguagem, o velho e excêntrico Wittgenstein: “Não se indague sobre qual é o significado duma palavra; indague-se qual é o seu uso”.

    Permita-me colocar apenas um questionamento a propósito, digamos, da relação entre dicionário e sociedade, entre este artefato técnico e cultural e os valores e representações sociais, tal qual, me parece, você estabelece em seu texto. 

    Penso que um dicionário faz mais do que retratar ou espelhar um momento da língua, com tudo o que nela vige: usos, significados, valores, etc.. Em certo sentido, ele contribui pra formar este próprio momento da língua que visa captar, isto é, o dicionário é um dos agentes de construção da língua, inclusive em seu aspecto pragmático, cotidiano. Pois, graças a legitimidade e autoridade do dicionário, a formalização dos significados, sua condensação em fórmulas e definições mais ou menos precisas são apropriadas pelos indivíduos e instituições e postas em marcha em suas práticas rotineiras, contribuindo assim pra disseminação e consolidação de certos significados das palavras, expressões, etc..

    Talvez seja esta visão construtivista do discurso que esteja na base do questionamento do MP. No entanto, há, a meu ver, um duplo equívoco aqui: primeiro, não se atentar para a função precisa do dicionário, isto é, a função almejada do trabalho de produção, como você muito bem nos esclareceu. E, segundo, conceber as pessoas como idiotas, incapazes de avaliação crítica, como meros suportes dos significados institucionalmente definidos. Abraços,

    • Chrystal C. disse:

      Alyson, ótimas colocações. Essa citação do Wittgenstein cai como uma luva!

      Essa ação do Ministério Público está dando ao cidadão o caminho passo a passo da “forma correta de se pensar”. E o “pensar”, como a gente bem sabe, é elemento fundamental para manutenção da ordem jurídica e política, aquela mesma que o MP deve guardar. Logo, acho que o MP está cumprindo a função dele: se eles pensam por nós, nos poupando deste “fardo”, a ordem será bem menos “perturbada”.Tomar o cidadão por idiota acho que é o que mais me dói nesse circo todo. Essa ingerência do MPF na vida do cidadão me leva a achar que, cuidando do Pai dos Burros, eles estão achando que os burros somos nós. 🙁

  5. Chrystal C. disse:

    Há um equívoco comum – na minha análise, fruto de uma interpretação superficial da sociedade – em achar que a correção social se dá unica- e exclusivamente pela correção política. Por correção política entendo, aqui, tanto a i) insistência exagerada no ‘politicamente correto’ e ii) a ingerência do Estado na esfera privada, regulando, por exemplo mas não só, sobre os usos que podem ou não ser feitos de palavras como ‘cigano’. Preconceito -não se extingue- por sentença com trânsito em julgado nem por decretos. Preconceito -se pune- política e judicialmente, mas não se extingue. Enquanto uns pensam em punir, eu penso em educar. 

    As armas são diferentes, os fins acabam sendo os mesmos.

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