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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 8 de março de 2012

Qual mulher na sociedade do trabalho?

postado por Carlos Freitas

Inicialmente tratadas como seres incompletos e dependentes das emoções, “as mulheres” tem conseguido cada vez mais – no contexto das sociedades modernas atuais – assumir postos e posições de poder outrora dominados pelos homens. Observa-se no Brasil, por exemplo, um aumento expressivo da participação de mulheres em carreiras profissionais socialmente consagradas como Direito e Medicina. Tais conquistas deveriam ser pensadas a luz do que o filósofo canadense Charles Taylor identificou como lutas feministas integradas a uma política transnacional de exigência de reconhecimento mais geral e que envolve diferentes lutas por reconhecimento de grupos minoritários ou “subalternos”, a exemplo também dos movimentos gay e negro.

A primeira vista, este parece ser um cenário social de reconhecimento da mulher a se vislumbrar em nossa sociedade. No entanto, quando recorremos a arte da suspeita analítica (tão cara a Marx, Nietzsche e Freud) e colocamos em aspas o termo “mulher” a fim de tomá-lo como categoria pré-construída a ser ela mesma problematizada, descobrimos meio que por efeito de desencantamento da alquimia social operada por palavras como “mulher moderna”, o seu pano de fundo objetivo opaco e persistentemente recalcado: o reconhecimento social da mulher (ainda) é diferencialmente distribuído e vivido entre as classes.

De acordo com Nancy Fraser, a política do reconhecimento – principal bandeira atual das lutas feministas – teria sido incorporada pelo feminismo do período do pós-guerra. Com essa nova postura, os problemas sociais que afetavam a mulher passaram a gravitar agora a partir da gramatica do reconhecimento. A consequência política disso foi uma mudança significativa no imaginário feminista, anteriormente preocupado com a questão de equidade social; agora voltado para a questão cultural dos padrões antropocêntricos de hierarquias. Sem negar a importância política de tais questionamentos culturais, Fraser chama atenção para a crescente autonomização e consequente “apartamento” entre um projeto feminista de transformação cultural e um projeto de transformação político-econômica e de justiça distributiva.  E é esse descolamento entre política da redistribuição e política do reconhecimento no âmbito das lutas feministas atuais que Nancy Fraser vai considerar “confuso”, uma vez que segundo a mesma filósofa, vai se observar nesse novo contexto de luta, uma tendência de subordinação das lutas sociais pelas lutas culturais.

Para além do diagnóstico teórico-crítico de Nancy Fraser, é importante acrescentar também como a situação de reconhecimento da mulher na sociedade moderna atual se fragmenta ainda mais quando pensada em termos da clivagem de classe.  Afinal, quem são as mulheres beneficiadas da ascensão sócio-profissional no mercado de trabalho? Quem são as mulheres que compartilham a auto-imagem da “mulher moderna”, isto é, como uma mulher que cultiva a cultura de si voltada para os ideais de autenticidade (individualidade, liberdade, autonomia e independência)? E sobretudo, quem são as mulheres que tem vivenciado de modo mais libertário a sua sexualidade, fruto de conquistas e lutas históricas feministas?

Ora, car@s leitor@s, quando nos deparamos com as amostragens estatísticas que cruzam a relação entre trabalho e gênero no Brasil, fica mais do que evidente os ganhos sociais e simbólicos existentes nos estratos mais educados e economicamente privilegiados do contingente de mulheres. É nas classes médias e altas que o imaginário da mulher moderna assume também para muitas, o contorno de “ação prática”. São as jovens moças oriundas de classes educadas e relativamente desprendidas das urgências econômicas que tem inflacionado as estáticas sobre o aumento da participação feminina em categorias sócio-profissionais de elevado prestígio social (direito, por exemplo, é hoje um curso que recruta muito mais mulheres do que homens). E mais, ainda segundo dados extraídos de  PNADs e de pesquisas censitárias do IBGE, particularmente mulheres de classe média e de cor “branca”, o que incorpora outra variável problemática da condição da mulher na chamada sociedade do trabalho, o cruzamento entre  critérios de classificação racial e critérios meritocráticos.

Em suma, as mudanças tão importantes observadas nas diversas configurações (seja na esfera pública, seja na esfera privada) da relação entre homens e mulheres ainda padecem de uma universalização transclassista que permita a mulheres oriundas das classes baixas vivenciarem com maior pujança os ganhos materiais e simbólicos das conquistas femininas. Lembrar desses aspectos sociais quase sempre secundarizados no que toca o papel social da mulher em nossa sociedade é atualizar na forma de ação política, as raízes históricas do surgimento do Dia Internacional da Mulher: 123 mulheres das CLASSES TRABALHADORAS que morreram lutando por reconhecimento social em nossa sociedade do trabalho.

 

Carlos Freitas

Sociólogo e Professor Doutor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Interesse por temas de Cultura Política e Sociedade. Contato profissional: calfreitas@hotmail.com

One Response

  1. Lucasmsn10 disse:

    Bacana esse texto.

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