Rio Grande do Norte, sexta-feira, 19 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 26 de março de 2012

Evitando a fadiga em berço esplêndido

postado por Madame Borboleta

Especial para a Série “Da Correção Política à Censura”

“‒ […] pois vê lá, amigo Sancho Pança, aqueles trinta ou pouco mais desaforados gigantes, com os quais penso travar batalha e tirar de todos a vida, (…) pois esta é boa guerra, e é grande serviço de Deus varrer tão má semente da face da terra.
‒ Que gigantes? ‒ disse Sancho Pança.
‒ Aqueles que ali vês ‒ respondeu seu amo ‒ de longos braços, que alguns chegam a tê-los de quase duas léguas.
‒ Veja vossa mercê ‒ respondeu Sancho ‒ que aqueles que ali aparecem não são gigantes, e sim moinhos de vento (…)
‒ Logo se vê ‒ respondeu D. Quixote ‒ que não és versado em coisas de aventuras […]”
(Miguel de Cervantes, O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha)

Muita gente me dizendo como pensar, pouca gente pagando meus pecados pra mim. Cada dia mais vocês aí nessa sociedade que eu não legitimo acham que estão aptos a dar palpite no que eu acho ou deixo de achar, no que e em como eu digo, ou deixo de dizer, no que eu faço ou deixo de fazer com o meu útero (embora em forma de Borboleta seria mais preciso discutir espirotrompas).

Você acha que o jeito que eu penso é errado. Mas você precisa encontrar uma forma de me dizer isso sem parecer preconceituoso (como eu) ou sem causar um enfrentamento com a minha pessoa-borboleta. Afinal de contas, uma das consequências possíveis em você me dizer sua opinião sem seguir as regras de etiqueta do Manual Oficial de Emissão de Opiniões publicado pela Patrulha do Politicamente Correto, é eu te chamar de barraqueiro. E ser barraqueiro hoje em dia está em baixa no mercado de morais.

Se sua opinião sobre a miséria da minha vida e da minha forma de pensar e de agir levar o selo de certificação da Patrulha do Politicamente Correto e eu me ofender com você, você não terá nenhuma responsabilidade sobre isso. Eu que me entenda lá com a moral vigente, que é quem dita as regras do bom conviver em sociedade. Mas eu vou te dizer com todas as letras que é pra não haver mal-entendidos: você está tra-pa-ceando. Defender uma opinião sem sal (e que nem é sua de verdade) apenas para não ter que se colocar como sujeito pensante e dono das próprias ideias é trapaça. Além disso, se você me confronta com algo que não existe concretamente – a moral ou o politicamente correto, essas abstrações que pairam sobre nossas cabeças ocas – eu não tenho motivos para mudar de opinião. O que a moral vai fazer comigo? Deixar de me amar?

Enfiar o dedo na minha cara com uma fórmula pronta para calar meus impropérios não nos levará a lugar nenhum. Eu posso até optar por evitar a fadiga e me calar, afinal de contas não adianta eu discutir com você – você não faz as regras, só as aplica, não é mesmo?. Mesmo calada, continuarei pensando e agindo de forma miserável quando você ou seus comparsas da Patrulha não estiverem por perto. Se a moral é algo que te limita, eu, em forma de Borboleta sem escrúpulos e sem limites, não dou a mínima pra ela. Quero mais é que o mundo acabe em um alambique para eu poder morrer bêbada e encostada.

Há algum mérito em você se valer de alguém mais importante que você – a moral – para me calar. Você quer uma sociedade melhor, eu entendo. Mas valer-se da correção política do meu discurso ou das minhas ações sem se colocar como oposição real a eles é uma bo-lu-dez que nos levará, no máximo, a vencer alguns moinhos de vento: uma grande derrota travestida de um mascarado ‘buen suceso’*.

 

* No capítulo VIII da novela Don Quixote de La Mancha – Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação. – nosso cavaleiro errante se lança contra “trinta ou pouco mais” moinhos de vento que se transformam em gigantes cruéis e, depois, voltam a tomar a forma inanimada de moinhos. Isso deu origem à expressão “lutar contra os moinhos de vento”, que designa qualquer batalha vã. Don Quixote não se importa se a luta é inútil, ele a deseja e, por isso, a toma por necessária para a humanidade. Nós, lutando acriticamente contra o Politicamente Incorreto, nos tornamos o engenhoso Don Quixote se arremetendo solitariamente contra todos os moinhos e gritando “Não fujam, criaturas vis e covardes, que um cavaleiro sozinho é quem os ataca”. O Politicamente Incorreto não existe. Ele é um gigante imaginário que esconde o inimigo verdadeiro: nosso preconceito (do qual padece até a mais linda das Borboletas).

 

Entenda a Série: Da Correção Política à Censura

Madame Borboleta

Madame Borboleta é um ensaio bailante e quase-pucciniano de Pornopolítica. Especialista em desconstruções filosófico-existenciais, ela está neste mundo apenas pela bebida grátis. Seu hobby é dançar em cima da mesa e, vez ou outra, sambar na cara da sociedade. Contato: @mmeborboleta (Twitter) e mmeborboleta@gmail.com

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