Rio Grande do Norte, quinta-feira, 28 de março de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 3 de abril de 2012

A continuidade da mentalidade escravocrata

postado por Anderson Soares

Por Anderson Soares

(Educador e Psicopedagogo)

Ao que tange as questões étnicas e raciais do Brasil, muitos alimentam a ilusão de que não existem resquícios perversos dos quase 400 anos de escravidão negra no país. Estes alimentam a fantasia da não existência de racismo baseando-se na miscigenação existente, numa carta constitucional democrática, pela ausência de manifestações racistas explícitas de dimensões institucionais, como no apartheid da África do Sul (esta anomalia histórica começou a ser desmantelada em 1991!) e nos EUA (até fins dos anos 60).

Podemos afirmar que, em fins do século XIX, as leis mudaram com o advento da Abolição e da República, porém os hábitos excludentes e a mentalidade racista não foram superados. Os negros foram legalmente considerados objetos e subespécies por quase 400 anos e deixam de sê-lo apenas porque a lei mudou? Essa foi a crença majoritária!

A escravidão foi abolida apenas pela pressão internacional, que estava ávida por mercado consumidor. O trabalho escravo tornava-se obsoleto diante do processo de industrialização e da modernização da estrutura econômica. Além de os negros serem preteridos e substituídos pelos imigrantes europeus, passaram a ser perseguidos (Lei da Vadiagem presente no Código Penal de 1890) e subestimados em seus hábitos e cultura.

Os ex-escravos não foram indenizados.  Os donos de terra continuaram com o poder econômico e político e não houve nenhuma vontade ou esforço para diminuir a desumana disparidade entre brancos e negros. Na prática, a abolição significou abandono (subcidadania) e as pessoas de pele negra foram estigmatizadas. A cor negra passou a ser referência de marginalidade, de depreciação pessoal, de trabalho braçal\desqualificado.

Estes fatos são demonstrações claras de que os hábitos e a mentalidade racista não haviam sido superados. Tudo isso é reforçado pelo racismo científico e eugenia que tanto impregnaram as Ciências Sociais, Medicina e Psiquiatria de fins do século XIX e começo do XX, na tentativa de confirmar a “inferioridade” biológica e a “incapacidade” dos negros na inserção numa sociedade supostamente livre.

O nosso sistema educacional também reproduziu o racismo no ambiente escolar e nos livros didáticos, excluindo e limando os personagens negros de nossa História.  Ressaltamos que, em nossa formação educacional, construímos uma visão de mundo europeizada (conforme desejo dos dominadores), sendo necessária, na contemporaneidade (apesar de resistência), a obrigatoriedade da disciplina História da África e Cultura Afro-Brasileira, com o intuito de as gerações futuras construírem uma visão de mundo mais diversificada e menos deformada.

Além de olharmos de forma estigmatizada e preconceituosa para o continente africano, nós não temos a real consciência de que as nações européias (“missões civilizatórias”) saquearam terras alheias e usufruíram de mão-de-obra escrava por mais de três séculos. Com o fim do processo de colonização, estas nações não devolveram o que saquearam, nem acreditam que têm uma imensa dívida com o violentadíssimo continente africano.

O racismo não declarado existente no Brasil contemporâneo é complexo e de difícil entendimento, por conta da eficácia da ilusão de uma democracia racial (não resultante em áreas como Direito e Medicina, por exemplo), da miscigenação e pela existência de leis democráticas (“todos iguais perante a lei”) que acabam camuflando as formas mais perversas de exclusão. Ainda, um “pacto” social velado: uns fingem que não discriminam e outros fingem que não são discriminados.

Para muitos ainda é difícil entender que a miséria brasileira tem conotação racial. Esta miséria não é democratizada, como muitos pensam. Existe a crença de que o branco pobre vai enfrentar os mesmos obstáculos que o negro pobre: o (a) branco(a) não será preterido(a) em seleções para trabalhar em contato com o público em ambientes sofisticados e em que a “aparência” física é preponderante (os exemplos são inúmeros, olhem ao redor!). Vai carregar consigo um importante ponto de “desempate” diante do negro pobre, conforme a atmosfera de racismo velado.

O livro “Nós não somos racistas” (do jornalista Ali Kamel) afirma que o racismo não é um aspecto estrutural da sociedade brasileira, que não existem impedimentos para a mobilidade social dos não brancos e que o branco pobre enfrenta os mesmos obstáculos que os não brancos pobres.

Façamos um retrospecto da construção da referência de beleza em nosso país, tendo como ícone a mulher branca. Então, começaremos a entender o sentimento de autorrejeição de pessoas que não têm como atingir os patamares de beleza que são reforçados a todo instante em comerciais de cosméticos e demais produtos de beleza. É necessário entender também por que crianças negras, em orfanatos, vivenciam imensas dificuldades no contexto de adoção.

A Psicologia Social e a Sociologia podem nos ajudar a entender o processo subjetivo de construção da identidade dos não brancos no Brasil. Neste processo, os não brancos olham para si próprios como a sociedade “europeizada” (os que alimentam a fantasia de um Brasil branco e chique) os vê; assim como o empregado se enxerga com os olhos do patrão explorador: sua identidade e bases internas constroem-se sob esta atmosfera.

Semelhante processo subjetivo se deu com os negros da África do Sul, em tempos de apartheid, quando eram obrigados a aprender o idioma dos dominadores, entender que os seus próprios hábitos, cultura e traços físicos eram inferiores e por isto aprender a repudiá-los.

Quais são os recursos internos e subjetivos que fazem com que uma pessoa, num restaurante, confunda um cliente negro(diplomata) com o manobrista (negro)?

De onde provém o espanto de um paciente, ao entrar em um sofisticado consultório do bairro do Tirol, de ser atendido por um médico negro e de onde provém o sentimento de dúvida diante da qualificação de um raro desembargador negro? Mais ainda: um policial, diante de várias pessoas a serem revistadas, faz a revista apenas na pessoa negra presente no local.

Procuramos entender os argumentos do sociólogo Demétrio Magnoli e da professora de Direito Constitucional Roberta Fragoso Kaufamn , cujos discursos são contrários às políticas afirmativas e às cotas.

Nós entendemos que as políticas afirmativas e as cotas não têm significado de favorecimento, mas sim o de admitir uma imensa dívida história e a justa reparação aos danos sofridos pelos não brancos da sociedade republicana (democracia do capital) que sempre foi excludente.

É necessário admitir também a existência de desigualdade de condições que faz com que o acesso à universidade seja privilégio daqueles de melhor condição econômica (quase sempre brancos), que não enfrentam obstáculos em todo o processo educacional: por isto obtêm o mérito tão exaltado pelos autores mencionados.

Estes mesmos citados defendem uma educação igualitária desde a Educação Infantil e a não necessidade de cotas para o acesso à universidade.

No nosso entender, o Estado sempre funcionou como instrumento regulador a serviço das elites econômicas: usam suas instituições e leis democráticas para fazer sua manutenção e concentrarem ainda mais o seu poder. É notório que da parte do Estado não há, efetivamente, nenhum interesse no acesso igualitário à educação por parte dos mais pobres.

A sociedade teria que passar necessariamente pelo processo de distribuição de renda para que o acesso à educação seja concretamente igualitário.  Entretanto, as elites econômicas não farão tal distribuição nem por compaixão e nem mesmo pela existência das leis.

É fundamental que a sociedade brasileira admita a existência do racismo como herança da prática e mentalidade escravocrata, para assim combater todos os seus resquícios de maneira sistemática. Urge entender também que o capital é o grande inimigo gerador das intolerâncias diversas (segmentando, coisificando e hierarquizando seres humanos: dividir e conquistar!); como as realizadas pelas nações européias colonizadoras, com a conivência da Igreja Católica que além de usufruir do trabalho alheio, afirmava que os negros não tinham alma, para assim justificar a escravidão.

Anderson Soares

Escritor.

2 Responses

  1. Diego Fernandes disse:

    Texto clichêzão, hein!

     

    Querendo criticar o discurso que abranda a escravidão, acaba por
    repo-lo, quando diz que “A escravidão foi abolida apenas
    pela pressão internacional, que estava ávida por mercado consumidor”. Ora,
    quer dizer então que os escravos não desempenharam nenhum papel nesse processo?
    Foram tão somente peças do maquinário capitalista? 

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