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Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 3 de abril de 2012

Resenha: Baú de Ossos (Pedro Nava)

postado por Uiara Nunes

Em 1968, aos 64 anos, o reumatologista e escritor mineiro Pedro Nava começava a escrever o livro de memórias “Baú de Ossos” (1972). Este seria o primeiro dos sete que comporiam sua obra e recriariam o gênero literário de memórias no Brasil, até então relegado a segundo plano¹. Em “Baú de Ossos”, com um toque de poesia, graça e ironia, Nava explora o tempo através da sua própria genealogia e infância, desvela a formação da identidade do povo brasileiro e trata de temas universais. E, como disse Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava faz saltar desse baú “a multidão antiga de vivos, pois este médico tem o dom estético de, pela escrita, ressuscitar os mortos”. É com este livro que começamos uma série de resenhas que acompanhará o relançamento da obra de Pedro Nava no Brasil.

Em “Baú de Ossos”, é facilmente perceptível a extensa pesquisa histórica realizada pelo autor. Nava menciona viagens e a posse de inúmeros documentos, tais como cartas, fotos, imagens, diários, relatos e tudo mais que o ajudasse a reconstruir o passado, “a tradição que prolonga no tempo a conversa de bocas há muito abafadas por um punhado de terra”². Com isso, de modo não linear, mas cronológico, o autor vai reconstruindo sua própria identidade. Reconstrução tal qual o Frankenstein de Mary Shelley, ou seja, a partir dos mortos – “Quem é que está na minha mão, na minha cara, no meu coração, no meu gesto, na minha palavra; quem é que me envulta e grita estou aqui de novo, meu filho! meu neto! Você não me conheceu logo porque eu estive escondido cem, duzentos, trezentos anos”².

Porém, há falhas nesse quebra-cabeça que são impossíveis de se “completar porque as peças que faltam deixam buracos nos céus, hiatos nas águas, rombos nos sorrisos (…)”². E é aí que Pedro Nava, graciosamente, preenche o vácuo deixado pela falta de documentação ou de relatos com sua imaginação, juntando “à verdade o verossímil que não é senão um esqueleto de verdade encarnado de poesia”². Dessa maneira, não há limites definidos, na obra de Pedro Nava. Lemos a ficção como verdade e a verdade como ficção. Tal característica, chamada de “dupla entrada”³ pelo crítico Antonio Candido, é uma das grandes forças da obra. O crítico também chama a atenção para o fato de que não é possível escolher uma só “entrada”, mas as duas ao mesmo tempo.

Além disso, engana-se quem espera encontrar em “Baú de Ossos” um narrador limitado pelo “eu”, preocupado unicamente em inflar seu próprio ego. Pois o narrador dessa obra se dilui na coletividade: primeiramente da família, depois de um povo, para, por fim, desaguar no Homem – “minha gente é o retrato da formação dos outros grupos familiares do país. Com todos os defeitos. Com todas as qualidades”². E as pessoas retratadas por Pedro Nava, pintadas como personagens ficcionais, acabam por permitir a abordagem de temas comuns à vida de todos nós. Nascimentos, amores, casamentos, conflitos, relações familiares, morte, todos são temas entrelaçados às memórias do autor. Por elas, acompanhamos também o desenvolvimento urbano no Brasil e da mentalidade do povo brasileiro, com sua riqueza cultural e mistura étnica, preconceitos e tradição.

Citando Drummond novamente, “Pedro Nava assusta, diverte, comove, embala, inebria, fascina o leitor”. “Baú de Ossos” é permeado de humor e ironia impagáveis. Sua linguagem, que mescla erudição e a cultura popular, é rica em poesia e dá mostras de um autor cônscio do manejo com as palavras. O leitor talvez sinta vertigens em meio ao emaranhado de nomes próprios, datas e dados históricos. Mas “Baú de Ossos” não deixa de ser uma viagem no tempo tão boa quanto, na mansidão de longas tardes ociosas, sentar e ouvir os mais velhos contarem suas estórias de criança e de seus amores. Uma oportunidade rara na nossa época moderna e célere.

 

1 BOTELHO, André. Apresentação. Em: Baú de Ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

2 NAVA, Pedro. Baú de Ossos. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

3 CÂNDIDO, Antônio. A Educação pela Noite e Outros Ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

 

Título: Baú de Ossos

Autor: Pedro Nava

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 520

Ano de lançamento: 2012

Preço sugerido: R$ 54,00

 

 

Uiara Nunes

Uiara Nunes estuda literatura, é colunista e integrante do conselho editorial da Carta Potiguar. E-mail: uiaranunes@gmail.com

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