Rio Grande do Norte, quinta-feira, 18 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 23 de maio de 2012

Já parou para pensar na própria morte?

As pessoas agarram-se a qualquer coisa na esperança de uma vida eterna e se esquecem de simplesmente viver.

postado por Felix Maranganha

Imagem: Dança Macabra/Michael Wolgemut (1493)

O medo da morte é um sentimento basilar dos instintos humanos. Dizem por aí que ninguém em sã consciência procura a morte. Talvez por isso considerem o suicídio e o heroísmo uma loucura. O medo da morte é uma reação instintiva a momentos de perigo, é o que nos mantém vivos. O problema da espécie humana é que aprendemos a ter medo da morte mesmo em situações de segurança extrema. O tempo todo pensamos nela, mesmo quando não somos conscientes disso. Desenvolvemos cultura, religião, arte, política, tudo por medo da morte, na esperança de que sobrevivamos a ela, ou que deixemos algo que sobreviva a nós. A vida é para poucos: é preciso coragem para experimentá-la em sua plenitude.

O que assusta na morte é que ela se parece com o nascimento. Ambos têm um ponto de início, ambos são lineares, ambos são irreversíveis, ambos são complexos, ambos são terríveis e assustadores. Quando uma pessoa nasce, ela insere-se em uma existência, um espaço tomado de dor, sofrimento, dúvidas, medo, ao que chamamos Vida. Você não pediu para nascer, mas sua existência te imbui de responsabilidades, perguntas, sensações, interações. Você é simplesmente jogado em um mundo sem certezas, e tudo, praticamente tudo é capaz de te fazer mal: do oxigênio que você respira ao carro que você dirige. Você começa a acostumar-se com a Vida, e vai relaxando: arruma umas certezas aqui, deposita o medo em outras coisas ali, inventa uns outros prazeres acolá, e isso tudo para fazer-lhe esquecer do fato de que você não durará para sempre.

Talvez seja isso que nos assusta. O nascimento e a morte são praticamente idênticos: vem-se do nada e vai-se para o nada. O meio termo entre esses dois processos de nascimento e morte é a Vida. Diferente do nascimento e da morte, a Vida não é definitiva e irreversível. Nos ocupamos dela por mais tempo, e acabamos nos habituando com seus revezes, criando para eles compensações: prazer, dinheiro, segurança, mitos, religiões, ilusões. No fim, invariavelmente, ela se encerra, e tudo o que construímos para dar-lhe sentido encerra-se com ela. Não há volta. A Vida não é definitiva, lembra-se?

E o que faremos para sobreviver à Vida? É a morte que nos une, e que nos separa! Ninguém lembra da própria concepção e do próprio nascimento, e assim não sabemos como é sair do estado de completa inexistência para o existir. Se tivéssemos essa memória, por certo estaríamos mais preparados para sair do existir para o inexistir. Por não entender esse processo, as pessoas têm medo de partir para o vazio existencial. Criam castelos em que possam tentar sobreviver, constroem casas dentro de casas, como bonecas russas no próprio ego. No fim, elas têm a certeza de que durarão mais, de que terão algo ainda após, de que serão eternas. Apesar de todas as desvantagens em viver, elas criaram muros que compensaram, e acreditam que esses muros são eternos. Não são. Por maiores que sejam os muro da segurança, do dinheiro, da religião, de todas as ilusões, um dia tudo desabará, e será em um único momento, um único minuto. Não terá retorno.

Um pessoa fica louca se passar vários anos pensando a respeito, tentando entender a própria Vida, o processo dinâmico que se mantém em pé enquanto pode, essa consequência aparentemente caótica do nascimento, indo sempre em direção ao ponto irreversível e definitivo do outro lado. Crises existenciais? Passei por elas. Qualquer pessoa sensata e sincera consigo mesma admitirá que já passou por elas. E até o fim, estaremos o tempo todo passando por elas. O que fazer então para partir despreocupadamente?

Erguem-se trinta fantasmas atrás de cada homem vivo. É esta precisamente a proporção entre os que ainda vivem e os que já morreram. Cerca de cem bilhões de criaturas humanas já pisaram o planeta Terra desde que o mundo existe. (Arthur C. Clarke, * 1917, + 2008, no livro 2001, Uma Odisséia no Espaço).

1) Nada dura para sempre: adolescentes e crianças são mais facilmente enganáveis com a aparente permanência das coisas, e até os mais velhos querem continuar existindo. Nada dura! Nada tem permanência! Tudo vive em mutação! Todos os nossos átomos são substituídos a cada sete anos, o que significa que já fui, na existência, quatro pessoas diferentes, e estou me encaminhando para a quinta. Nossos pensamentos e nossas opiniões mudam o tempo todo, hoje não sou a pessoa que era ontem. A sociedade muda no decorrer da história. As obras de arte podem parecer as mesmas, mas elas mudam de contexto, de interpretação, envelhecem, são restauradas, reeditadas. Nossas cidades morrem, se deterioram, mudam sua cara, sua segurança, sua economia, são abandonadas. A vida na Terra não durará para sempre, pois um dia o Sol crescerá a e nos engolirá, e nada restará que anuncie que um dia estivemos aqui. Nossa própria vida passa por etapas: não sou mais criança, e tudo o que tenho hoje em saúde, beleza e disposição se esvairá daqui a pouco, na velhice. Se nada é permanente, o que me faz acreditar que eu seria?

2) Pare com o chororô do ego: temos a ilusão de que somos importantes, de que uma infinidade de universos possíveis, 250 bilhões de galáxias, 200 bilhões de estrelas locais, 9 planetas, 7 bilhões de pessoas e todas as coisas existem apenas para que nosso ego possa existir. Nosso ego é somente mais um dos trilhões de processos complexos que espalham-se pelo universo, pelo multiverso, por toda a existência. O que nos faria acreditar que tudo isso existe só para garantir nossa existência? O ego é um processo de um organismo repleto de vida, é um conjunto de ações, de reações, de aprendizados, de estruturas cerebrais e corporais, que fazem com que seu corpo funcione e reaja ao ambiente, e nada além disso. Você morre, e seu ego morre com ele. Nada sobrevive à sua morte. Você não aparecerá em um paraíso cheio de anjos lembrando-se do que passou, e muito menos em um inferno de chamas e sofrimento. Você vai simplesmente deixar de existir, como tudo o que o cerca deixa de existir. Nenhuma semente permanente e imortal restará de você, nada, nadica de nada.

3) Contemple a Vida:  contemple a natureza, as coisas, os objetos de sua casa. Veja como duram pouco, como tendem ao desgaste, como se destroem com o tempo. Veja como são substituídos. Veja o caos no universo. Olhe para as estrelas. Numa delas, talvez, haja uma criatura muito diferente de nós, mas também olhando para o céu e imaginando se aquele sol amarelo, o nosso, teria um mundo com Vida. Nisso você percebe que está em uma galáxia e que, em essência, você é a galáxia, é formado por compostos que ela criou, por elementos químicos que suas estrelas formaram. E então você percebe: não há motivos para a existência, as coisas apenas existem. Não há propósitos para a existência, não há direção para as coisas, não existe um sentido para a Vida. Apenas viva sua Vida! As coisas não precisam de um motivo, de um propósito, de uma direção, de um sentido. A Vida nunca precisou de um sentido!

4) Você não tem importância: você não é nada diante do todo. Quando temos um problema, gostamos de achar que somos importantes o suficiente para causar comoção geral da nação. Mas o que é você diante de toda a história da humanidade? Todos morrem! As chances de você ser um anônimo na história são grandes. Quantas pessoas, das mais de cem bilhões que já pisaram no planeta, você sabe o nome e o que fizeram da vida? Você é apenas um indivíduo em uma geração a mais dentre as mais de 13.000 gerações que nos separam dos primeiros representantes de nossa espécie. Somos apenas mais uma espécie dentre as mais de 30 milhões que convivem conosco no planeta. As 30 milhões de espécies são apenas as atuais, pois nosso planeta tem mais de 3,9 bilhões de anos em evolução da vida. Mesmo assim, nosso planeta tem 6 bilhões dos mais de 13,7 bilhões de anos do Universo. Nosso planeta talvez dure ainda uns 5 bilhões de anos, até a morte de nossa estrela, e por certo não teremos o universo para sempre, alguns cálculos mais otimistas jogam o universo para até 120 quintilhões de anos no futuro. Enfim, você acha que seus 20, 40, 80 anos de vida signifiquem algo diante de tudo isso? Estou falando apenas no tempo. No espaço é que fica demonstrado realmente o quando somos nada. Você acha que ficar rico, famoso, poderoso, saudável fará algum efeito? Somos nada, seu cabra! Ponto final!

5) Nascer é igual a morrer: a diferença que fazemos entre nascer e morrer são ilusões. Nascer e morrer são dois eventos definitivos, uma vez que aconteceram, não têm retorno. O conjunto de causas que existiram antes de você e culminaram em seu nascimento, a sua Vida que resultou do seu nascimento e o conjunto de efeitos-causas que restará após a sua morte são apenas contingentes. Os eventos, em si, são completamente definitivos. Você tem dois pais antes de você nascer. Até ali, você é só uma possibilidade entre outras infinitas possibilidades. Mas você é concebido, é finalmente uma existência. Você já existia antes, em outras formas, em outras existências: a luz que alimentou as plantas que alimentaram seus pais, seus pais, a carne dos animais que alimentaram seus pais, e depois passou a ser o que você é durante sua vida por meio das mesmas causas. Você morre. Com o evento definitivo da morte, você passa a ser apenas mais uma causa, uma possibilidade que se realizou e enfim passou. Será alimento para os vermes, pó para a Terra, lembrança e luto para os vivos, e essas coisas culminarão em outros nascimentos, em outras mortes, em um ciclo longo e interminável. Não existem diferenças ontológicas, metafísicas, entre o nascer e o morrer: são eventos de mudança de ser no sistema de existências e inexistências. Toda a sua Vida resume-se a uma causalidade, pois até mesmo o evento derradeiro dela, a morte, só ocorre em função de você estar vivo. A melhor forma de escapar da morte é não nascendo.

6) Viva o agora: você já nasceu, e não há nada que se possa fazer a respeito. Está no passado. Você não está mais nascendo, já nasceu, é algo definitivo. Se matar não mudará esse fato. Há apenas um agora, a Vida. Se está vivo, então viva! Vá ler um livro, aprender algo, ter filhos, festejar. Você pode morrer amanhã, depois de amanhã, daqui a oitenta anos, mas ainda não morreu, ainda está vivo. Não aproveite o momento pensando no futuro. Adolescentes sem perspectiva fazem isso: drogam-se, fazem estripulias, exageram, pois amanhã eles podem morrer. Vivem em função da morte, e querem aproveitar a Vida ao máximo dos prazeres enquanto dá. É outro erro: vivem do futuro. Você ainda não morreu! Há tempo para uma porção de coisas, então viva naturalmente, viva normalmente. Continue indo à escola, continue lendo livros, continue indo a festas, continue fazendo amigos. Isso também serve aos espiritualizados que creem em vida após a morte. Não joguem suas esperanças ao que está atrás da cortina da morte definitiva. Você só consegue enxergar até ela, e não além dela. Vivam o agora. Não guardem a virgindade pensando em ir para o paraíso após a morte, nem deixem de viver prazeres por medo de um inferno depois da morte. Vivam os prazeres e as dores, as angústias e as alegrias, as dúvidas e as certezas, o medo e a segurança, vivam tudo o que tiverem para viver agora, e não o que tiveram para viver antes, e muito menos o que terão de viver depois. Vivam tão somente o que dá para viver agora.

7) Fortaleça sua dignidade: Pensemos como Ernst Hemingway. Por que você tem medo de morrer? Bilhões de pessoas já fizeram isso antes de você, e todos terão de fazê-la de qualquer forma. Porém, acredita-se que viver com dignidade é viver com posses, com sexo, com fama, com poder, com saúde, com juventude, com beleza. Tudo isso são coisas que não dependem de você, externas a você, que acabam com o tempo, que desaparecerão. O que for com você, morreu contigo. O que não foi com você, agora é de outra pessoa. Na hora, as pessoas choram, acham-se imortais. Duas pessoas podem encarar seu último momento de duas formas diferentes: ambos podem ter o mesmo tipo de morte, sofrer as mesmas dores, e ambos terão suas experiências e suas vidas encerradas para sempre em suas mortes, mas um morrerá tendo aproveitado sua Vida, o outro não. Desenvolver a dignidade é importante, pois nos ensina que quem não está satisfeito com o que tem em mãos, aquilo que tem em mãos nunca o satisfará. Se você não está satisfeito com sua Vida, sua Vida nunca o deixará satisfeito, mesmo que conquiste o universo inteiro.

8 ) Seja solidário com a morte dos outros: a solidariedade é um ato de identificação: você vai à situação do outro, onde ele está, e abre mão de uma parte de si mesmo para que o outro possa ser mais feliz. Assistência social é solidária. Caridade é solidária. Mas ninguém nunca imaginou que a solidariedade poderia estar na morte. Gosto de dizer que um dos meus maiores mestres foi um amigo de João Pessoa/PB, hoje aposentado, que trabalhava no Instituto Médico Legal. Às vezes, depois da aula, eu ia comprar um lanche. Certa vez, peguei o lanche debaixo de chuva, e me protegi no IML. Lá dentro, um médico legista já velho conversava comigo, sentia saudades de ter gente viva para conversar às vezes. Com o tempo, comecei até mesmo a entrar na sala de necrópsia e a ver corpos desmembrados, em decomposição, congelados. Hoje, entendo aquilo como um exercício: entender e acompanhar a morte alheia é um ato de solidariedade, pois estão todos no mesmo barco. Veja a carcaça de uma vaca apodrecendo e encare aquilo como real, como comum a todos os seres, até mesmo aos que comem aquela carcaça. Visite o IML, veja corpos desmembrados, pessoas mortas. Vá a velórios. Visite cemitérios. A princípio é assustador, mas com o tempo você se acostuma, e entende que a tendência sua, e deles, e de todos, é um dia terminar. Se terminar de forma violenta ou calma, dolorida ou indolor, repentinamente ou demoradamente, é algo que não fará a menor diferença. Todos vamos embora de qualquer jeito. Enxergar do modo certo um gato atropelado e mal-cheiroso, repleto de larvas de moscas, vendo-se nele, entendendo-se nele, às vezes ensina mais que todas as religiões do mundo reunidas.

Felix Maranganha

Licenciado em Letras, especialista em Educação a Distância e mestrando em Ciências das Religiões, Felix Maranganha é Linguista, Filólogo, Escritor, Filósofo, Defensor dos Direitos Humanos e Libertarianista. Pratica o Zen-Budismo, é ateu, joga sinuca e poker e adora pimenta. Alguns o confundiriam com um anti-marxista, mas ele não liga muito para essas coisas. É autor do blogue http://ocalangoabstrato.blogspot.com

2 Responses

  1. Daniel Menezes disse:

    Quem pensa na morte é porque não tem uma boa vida.

    • felixmaranganha disse:

      É Daniel, pensar na morte é natural, mas fiar preso às consequências desse pensamento é desumano, é antinatural.

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