Rio Grande do Norte, quarta-feira, 24 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 29 de maio de 2012

Identidade de gênero: entre a gambiarra e o direito pleno

postado por Carta Potiguar

Vários países têm leis que asseguram direitos às pessoas trans, a exemplo de Uruguai, México e Espanha. A legislação argentina, porém, inova porque não exige que a pessoa trans tenha diagnóstico de transtorno de identidade.

Por Berenice Bento

(Socióloga e prof. do Dep. Ciências Sociais – UFRN)

O parlamento argentino aprovou a Lei de Identidade de Gênero, que assegura direitos fundamentais às pessoas trans (transexuais e travestis). Com isso, o país passou a ter a legislação mais avançada do mundo. A lei estabelece: 1) qualquer pessoa poderá solicitar a retificação do sexo no registro civil, incluindo o nome de batismo e a foto de identidade; 2) a mudança de sexo não necessitará mais do aval da Justiça para reconhecimento; e 3) o sistema de saúde deverá incluir operações e tratamentos para a adequação ao gênero escolhido.

Mais: a lei define identidade de gênero como a “vivência interna e individual tal como cada pessoa a sente, que pode corresponder ou não ao sexo determinado no momento do nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo”. Não condiciona as mudanças nos documentos à realização das cirurgias de transgenitalização.

Vários países têm leis que asseguram direitos às pessoas trans, a exemplo de Uruguai, México e Espanha. A legislação argentina, porém, inova porque não exige que a pessoa trans tenha diagnóstico de transtorno de identidade (como é o caso da Espanha) e transforma o processo de alteração dos documentos em simples processo administrativo.

As leis que dispõem sobre direitos das pessoas trans mudam de acordo com a compreensão que o legislador tenha do que seja gênero.

 

Quanto mais próximo da visão biologizante de gênero, maior serão as exigências para as cirurgias de transgenitalização e as mudanças nos documentos. Por essa visão, ou se nasce homem ou se nasce mulher e nada poderá alterar a predestinação escrita nos hormônios.

Nesses casos, as legislações têm caráter autorizativo. As pessoas trans precisarão de algum especialista para atestar a validade das demandas. Na legislação argentina, prevaleceu o princípio do reconhecimento da identidade de gênero, sem nenhuma referência à condição de doença ou transtorno.

No Brasil, não há nenhuma lei que garanta às pessoas trans o direito a mudar de nome e de sexo nos documentos. O que temos são gambiarras legais: a utilização do nome social. Uma solução à brasileira. Mudar sem alterar substancialmente nada na vida da população mais excluída da cidadania nacional.

Universidades, escolas, ministérios e outras esferas do mundo público aprovam regulamentos que garantem às pessoas trans a utilização do “nome social”. Assim, por exemplo, uma estudante transexual terá o nome feminino na chamada escolar, mas, no mercado de trabalho e em todas as outras dimensões da vida, terá que continuar se submetendo a situações vexatórias e humilhantes.

Diante da paralisia do Legislativo nacional em regulamentar a alteração dos documentos, muitas pessoas trans têm entrado com processos na Justiça e, em alguns casos, têm conseguido vitórias. No entanto, ainda prevalece a tese de que é necessário, primeiro, a realização das cirurgias de transgenitalização e, no segundo momento, é que se poderão demandar juridicamente as alterações nos documentos.

A mais recente proposta de regulamentar as mudanças nos documentos desvinculando-as da cirurgia é da senadora Marta Suplicy. No entanto, a proposta continuará sendo arremedo na vida das pessoas trans, uma vez que exige o laudo de transtorno de identidade de gênero, mantém a concepção patologizante da identidade trans e, por fim, mantém a necessidade do processo na Justiça.

O juiz continuará com poder de decidir se a pessoa trans poderá ou não mudar os documentos. Dessa forma, a proposta da senadora troca seis por meia dúzia e continua operando seus argumentos nos marcos da autorização, não do reconhecimento pleno dos direitos humanos.

 

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Braziliense em 29/5/2012

 

Carta Potiguar

Conselho Editorial

One Response

  1. Rubens disse:

    Concordo com as ideias de Berenice Bento! Acredito que o problema não é ser homem ou mulher e nem o órgão sexual. O problema é como os gêneros são tratados em nossa sociedade. Os homens não tem liberdade de fazer o que quiser com o corpo assim como as mulheres. Por exemplo, uma mulher pode passar batom numa boa e ela é elogiada e trabalha numa empresa normalmente de batom. Já se o homem passa batom ele é espancado e não consegue trabalhar dignamente. Esse é só um exemplo diante de muitas outras coisas que o homem é impedido de fazer. Daí muitos recorrem aos médicos para fazer cirurgias de mudança de sexo e entram na justiça para alterar o nome e o sexo nos documentos. Mesmo assim, por serem taxados de transexuais, não conseguem totalmente uma vida digna. É preciso que haja projetos que os protejam da discriminação. Muitas mulheres biológicas que vivem bem não sabem o que é não poder passar batom nos lábios sem serem rechaçadas e violentadas na nossa sociedade. Entre outras coisas. Não fazem ideia de que o preconceito que as travestis sofrem é em relação por serem seres afeminados assim como elas. Se soubessem e sentissem, ajudariam as travestis e as transexuais a poderem viver sem serem discriminadas e ajudariam a tirar o machismo da cabeça dos homens. E assim o batom não estaria mais restrito as mulheres e todos poderiam utilizar tranquilamente não importa o sexo. Mas infelizmente vivemos numa sociedade em que o machismo e os tratamentos desiguais de gênero são configurados na cabeça de todo mundo de uma maneira ditatorial e escandalosa, o que faz com que muitos, principalmente quem nasce homem, que não se encaixam nessa visão tenham que recorrer as cirurgias de mudança de sexo para poderem se sentir bem. Mas como não é fácil passar por esse processo, acredito que muitas pessoas recorrem ao suicídio. Os gêneros são tratados como opostos. o que um não pode o outro pode. E por isso para muitas pessoas viverem melhor, se sentirem desconfortáveis, precisam migrar para o outro gênero. Se os gêneros não fossem tratados como opostos e as coisas fossem compartilhadas, talvez todo mundo viveria melhor.

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