Rio Grande do Norte, quinta-feira, 25 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 17 de agosto de 2012

A Culpa pertence a Deus

postado por Felix Maranganha

Escola de Atenas

Conversei esses dias com um amigo evangélico da Igreja Universal do Reino de Deus e percebi, em seu discurso, o bom e velho tirar o corpo fora, atribuir a responsabilidade a outro e, juntamente, a culpa pela falha de qualquer processo. Ele não passou num mestrado ano passado, e perdeu o emprego no mesmo mês, e disse “Deus assim determinou“. Quando perguntei o que ele iria fazer, a resposta foi: “Deus proverá“. Em seu discurso, pelo visto, predominava uma dependência quase absoluta a Deus, que viria a providenciar seu emprego, sua vida, seu mestrado e tudo o que viria depois. Por isso, não é preciso um plano, um direcionamento, uma ação, já que Deus fará todo o resto. Discutindo sobre o que era a providência divina, ele me afirmou com todas as letras que tratava-se de confiar em Deus para que, mesmo que você não faça nada, ele providencie tudo. Pois bem, em relação a esse Calvinismo ao avesso, me lembrei da tentativa de conceituação do conceito de piedade no diálogo entre Sócrates e Eutífron, no diálogo platônico intitulado Eutífron.

O texto, estruturado em forma de diálogo (claramente dramático) foi escrito por Platão no século IV a.C. Suas duas principais personagens são Sócrates, que prefigura o filósofo consultado pelo cidadão que dá nome ao texto, Eutífron. Tomado de um ímpeto pela execução da justiça, Eutífron parte em busca dos juízes para que a punição do próprio pai seja feita, uma vez que o mesmo, por um ato de impiedade, causou a morte de um servo antes que o mesmo pudesse ser julgado por um crime. Devido a isso, e imerso em dúvidas, o cidadão recorre a Sócrates e com ele dialoga. Para tal, ele usa como argumento o fato de, assim, estar sendo piedoso.

Inquerido por Sócrates sobre o que é a piedade, Eutífron apenas responde que a ela é “aquilo que agrada aos deuses”. Essa resposta bastante minimalista leva consigo todo um conjunto de valores que, à primeira vista, desagrada Sócrates, devido à sua natureza irracional, devota e contraditória. É mais ou menos o problema que encontrei em meu amigo da Igreja Universal, quando afirma que Deus providenciará tudo o que ele deseja. E essas falhas são elucidadas por Sócrates no decorrer do diálogo.

Tomando essa afirmação de Eutífron como ponto de partida, Sócrates faz notar que os deuses sempre estão em conflito. Seus valores, sejam eles morais, sejam eles naturais, estão sempre em desacordo por causa da natureza dos próprios deuses. Logo, o conceito de piedade, descrito por Eutífron, carece de fontes plausíveis e argumentos fortes que o sustente. Diante de tanta variedade de deuses e de modos de manifestação da vontade dos deuses, o que garante ao cidadão Eutífron que seu pai tenha agido com piedade ou impiedade? Lembram-se da conversa entre Aquiles e Briseis em Tróia? Para Briseis, a guerra era imoral, pois a sabedoria era a vontade de Apolo. Aquiles evoca Ares, afirmando que a guerra não é imoral porque é vontade de um deus também específico. Sócrates suscita a dúvida acerca do princípio que gera a piedade, a causa da mesma, independente da vontade dos deuses ou dos homens. Tanto isso, que Sócrates diz:

Aquilo que é grato a alguns deuses pode desagradar a outros, com o que, caro Eutífron, não seria de surpreender que aquilo que fazes ao castigar teu pai fosse grato para Zeus, mas odioso para Cronos e Urano, grato a Hefaísto, mas odioso a Hera e, igualmente, grato e desagradável para uns e outros deuses que mantêm desacordo acerca disto.

A mesma coisa natural pode ser amada e odiada pelos deuses, não havendo uma lei única ou princípio universal que governe no argumento de Eutífron. Ares, o deus da guerra, valoriza coisas distintas de Apolo, o deus da sabedoria. Diante disso, Sócrates passa a demonstrar pelo uso da razão que a piedade é um princípio em si, independente do que pensam os deuses em relação a ela. Diferenciam-se as coisas das substâncias, aquilo que é levado torna-se algo distinto daquilo que leva. A ação não produz o princípio, mas é produzida pelo mesmo. Sócrates finda por estabelecer a distinção entre o princípio e a coisa, como sendo o princípio algo universal e a coisa como algo singular, particular. Retomando os argumentos de Eutífron, ele ainda afirma que “aquilo que é piedoso é amado por sua condição de piedoso e não porque se o ama”, ou seja, o princípio do ser piedade é pré-existente à ação piedosa e ao amor dos deuses por ela.

Sócrates continua, iniciando uma investigação racional da natureza desse princípio, afirmando que o mesmo é amado por seu caráter racional, insistindo que a piedade é um objeto de amor porque é amada, mas que sua ontologia independe de ser amada ou não, obrigando-nos a investigar aquilo que fundamenta o seu valor, e não a sua manifestação externa.

Mas o leitor pode se perguntar: “Deus não é único para o Cristianismo? Como pode haver contradição em sua vontade se Ele é um só?” O leitor deve convir que o Deus do Cristianismo que pode ser Bom (Marcos 10: 17-22) e Mal (Isaías 45:7), definir todas as energias em apenas um ato possível dele é reduzi-lo e, o mais importante, é nada mais que lançar-se ao léu. Se houver a sorte de conseguir algo que o sustente, você teve fé e Deus o recompensou. Se tiver o azar de piorar sua situação, prontamente você não tem fé e afastou-se de Deus. Entenderam o perigo desse pensamento?

Felix Maranganha

Licenciado em Letras, especialista em Educação a Distância e mestrando em Ciências das Religiões, Felix Maranganha é Linguista, Filólogo, Escritor, Filósofo, Defensor dos Direitos Humanos e Libertarianista. Pratica o Zen-Budismo, é ateu, joga sinuca e poker e adora pimenta. Alguns o confundiriam com um anti-marxista, mas ele não liga muito para essas coisas. É autor do blogue http://ocalangoabstrato.blogspot.com

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