Rio Grande do Norte, sábado, 20 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 5 de julho de 2013

A vinda de médicos estrangeiros e os falsos dilemas da polêmica

postado por Alyson Freire

Durante a semana, médicos e estudantes de medicina brasileiros organizaram diversos atos públicos para protestar contra a vinda de médicos estrangeiros para Brasil. Em alguns estados, o protesto foi além: paralisação do atendimento ambulatório e das consultas por um dia ou algumas horas. É bem verdade que há nesses protestos e no debate que se criou em torno deles, indiferença, egoísmo, falta de solidariedade assim como ressentimento e disputas partidárias.

Em geral, quase toda polêmica está baseada em falsos dilemas e polarizações. Nos outros casos, os sentimentos e as disputas pessoais costumam enviesar as posições e obscurecer a compreensão dos argumentos. Os protestos dos médicos brasileiros contra a vinda de médicos estrangeiros é o exemplo mais recente dessa regra.

Há muita incompreensão em toda essa celeuma; teorias conspiratórias, preconceitos ideológicos contra Cuba, corporativismo, equívocos e desonestidade nas informações sobre o Revalida, oportunismo político, interesses econômicos de reserva de mercado, entre outros mais. Nesse sentido, a primeira tarefa de um pensamento racional é colocar o debate em seus devidos termos pra afastar e limpar o terreno das incompreensões geradoras de tanta confusão. Para isso é preciso, primeiro, desfazer as polarizações, as evidências e falsos dilemas.

images (12)Um dos falsos dilemas em que muitos médicos e aqueles que comungam de opinião contrária a “importação” de médicos estrangeiros (não são apenas cubanos, frise-se) se agarram consiste em opor em lados opostos investimentos na saúde pública e a vinda de tais médicos do exterior. Ou, em outras palavras, que o principal problema da saúde no Brasil não reside na falta de médicos e sim na falta de estrutura e incentivos para exercer a medicina. Uma vez sanado tal problema, haverão médicos em todos os lugares do Brasil, inclusive nos mais remotos e desprestigiados.

O erro consiste em criar um dilema ou uma hierarquia entre os dois aspectos acima. A questão, posta desse modo dicotômico e hierárquico pelos médicos brasileiros, é um equívoco. Ambos os problemas, assim como os caminhos para resolvê-los ou atenuá-los, não se auto-excluem ou se contradizem. Podem, e devem, ser tratados de maneira concomitante. Porém, à depender das circunstâncias e urgência, eles podem sim ser atacados de maneira pontual e em separado.

É absurdo pensar que existem pessoas que discordam de investimentos em melhorias nas condições de trabalho, remuneração e formação dos médicos ou mesmo que a simples vinda de médicos estrangeiros resolveria o problema da saúde pública no Brasil. O debate não consiste nisso, em optar por um ou por outra medida. Trata-se sim de contextualizá-las e avaliar a “importação” dos médicos segundo sua finalidade principal, qual seja: suprir um déficit concreto de médicos no interior do país.

Segundo estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea -, baseado em dados do Censo Demográfico do IBGE de 2010, comparado a outras carreiras, medicina é a profissão com a maior escassez de profissionais. O número insuficiente e, sobretudo, a disparidade na distribuição regional dos médicos no Brasil, são fatos, dados objetivos. A média nacional consiste em 2 médicos para cada mil habitantes – mais precisamente 1,95. Enquanto regiões como São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Distrito Federal são privilegiadas com um número de médicos acima da média nacional, os estados do Norte do Brasil figuram abaixo da média nacional. É quando analisamos os dados à luz de sua distribuição regional que enxergamos quão grave é a situação. De acordo com dados do Conselho Federal de Medicina, as regiões Sul e Sudeste do país contam com nada mais nada menos do que 70% dos médicos brasileiros!

 

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Somado a disparidade da distribuição do número de médicos, há ainda um outro dado alarmante, o qual mostra, objetivamente, qual classe de pessoas é mais afetada pela concentração regional dos médicos e, sobretudo, pelo modelo privatista de medicina favorecido em nosso país. Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar mostram que, atualmente, 46,6 milhões de pessoas possuem planos de saúde no Brasil e que, para o seu atendimento, nos estabelecimentos privados e consultórios particulares existe 354 mil postos de trabalho ocupados. Em contrapartida, para o atendimento médico do restante da população – algo em torno de 144 milhões de pessoas – que depende exclusivamente do SUS temos, por sua vez, 281 mil postos ocupados por médicos.

Não apenas dados objetivos corroboram a tese da carência de médicos, mas, também, a percepção social das pessoas em seu cotidiano. O mesmo Ipea em outro estudo constatou, ouvindo 2773 pessoas em todas as regiões do país, que a falta de médicos é apontada como principal problema do SUS, tanto pelos que utilizam (57,9%) como pelos que não utilizam o serviço (58,8%).

 

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A questão não é saber se esse é ou não o maior problema, ou se ele a raiz da péssima situação da saúde pública no país. A questão é apenas reconhece-lo como um problema grave e relevante que possui duras e urgentes consequências.

Para sairmos um pouco da frieza dos números e transformá-los em carne e sangue é somente preciso dar voz a quem talvez mais interessa esse debate sobre a vinda de médicos estrangeiros, a saber; as pessoas mais carentes de acesso à saúde que sofrem no corpo e na alma os prejuízos desse enorme vazio assistencial. Inexplicavelmente, elas são quem até aqui as que menos foram ouvidas as opiniões a esse propósito.

Ainda que falte estrutura e condições adequadas, inclusive de itens básicos como a falta de fios de aço, gaze e esparadrapo, um médico é melhor do que nenhum, alguma assistência é melhor do que nenhuma, pois o profissional e o conhecimento incorporado estão ali presentes. Equipamentos, macas, laboratórios, raio-X, remédios, ambulâncias, hospitais sozinhos fazem nada ou muito pouco se não houver as pessoas qualificadas para manejá-los e, principalmente, aqueles que se servirão do seu suporte para diagnosticar e tratar. Por isso, é urgente suprir a carência de médicos para atender a demanda por assistência. Sem eles, qualquer trabalho de prevenção e tratamento se torna bem mais difícil.

É a partir desse contexto que se deve entender a “importação”. Ela é uma medida paliativa, de urgência, para resolver esse imenso abismo na assistência, e não para resolver a totalidade das deficiências do sistema de saúde no país.

E a carência de profissionais não poderia ser resolvido com maiores investimentos na saúde, com a criação de plano de carreira para os médicos do SUS, com o aumento de vagas nas faculdades de medicina e outras medidas mais estruturais? Óbvio que sim.

Porém, a implantação e, sobretudo, os efeitos e resultados dessas medidas e dos investimentos nas condições de trabalho para atrair médicos para os rincões, grotões e periferias do Brasil exigem tempo. Enquanto isso, há um contingente enorme de pessoas desamparadas de assistência médica que não podem esperar até que de fato os resultados se façam sentir na realidade delas. Nada justifica sacrificar essas pessoas e gerações inteiras em nome de mudanças estruturais – necessárias e urgentes, ressalta-se – que surtirão efeito apenas mais à frente. Não é do dia pra noite que se reconstrói um verdadeiro, de qualidade e universal sistema de saúde público. Certamente, é preciso começar com mais seriedade e sistematicidade a fazê-lo mas sem esquecer dos que necessitam, aqui e agora, com urgência do mais básico e fundamental elemento para garantir o seu direito de acesso à saúde; o profissional, o médico.

Situações urgentes exigem medidas urgentes, de resultados imediatos. Sozinhas, elas não resolvem problemas estruturais, é certo, mas elas ajudam a combater, no presente, os seus efeitos perversos. Esse, e tão somente esse, é o real sentido de medidas paliativas como o da “importação” de médicos estrangeiros. Algo simples, óbvio, de se entender, mas que, no entanto, toda a confusão de ideias e sentimentos acabam por obscurecer.

 

Fontes dos dados apresentados:

http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/radar/130703_radar27.pdf

http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/110207_sipssaude.pdf

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

2 Responses

  1. Thanatos O-Yama disse:

    Cuidado que vão “marcar sua fisionomia”

  2. Luiz Paulo Rosa disse:

    Torcendo para que meu comentário não seja excluído, como da última vez, :D.

    O autor do texto foi muito claro ao tentar “desvendar” e colocar em termos não dicotômicos as inúmeras questões que envolvem a vinda de médicos estrangeiros. Segundo ele – “É bem verdade que há nesses protestos e no debate que se criou em torno deles, indiferença, egoísmo, falta de solidariedade assim como ressentimento e disputas partidárias” – difícil não relacionar essa análise (im)parcial a ideia subjacente e preconceituosa de que ou os médicos e estudantes são massa de manobra ou são indiferentes, egoístas, não tem solidariedade, são ressentidos e tem, preponderantemente, interesses políticos. Resultado: uma nova polarização criada.

    Em seguida, há uma avalanche de dados e números de pesquisas que, isoladamente, nada dizem da distribuição desigual de médicos no Brasil. É necessário que se conheça a realidade da Medicina para poder tecer comentários dessa envergadura. Primeiro, a maioria das propostas oferecidas aos médicos nos interiores do Brasil, à guisa dos “enormes salários”, é pautada em vínculos precários e não oferecem nenhuma estabilidade ao profissional. Agora me digam: quem quer trabalhar em um local sem ter garantia de que receberá o salário e ficar submetido aos desmandos dos prefeitos?

    Segundo, a grande maioria dos programadas de Residência Médica, bem como de faculdades de Medicina, encontram-se nas regiões litorâneas, nas capitais e na região Sudeste. Coincidência não? Talvez esse outro fator influencie a distribuição desigual.

    Terceiro, é fato incontestável a precariedade das condições de trabalho oferecidas aos profissionais nessas cidades. O autor do texto pode não saber (ou se sabe prefere não acreditar) mas médicos não tem super poderes. É impossível diagnosticar e tratar uma infinidade de doenças sem o auxílio de exames básicos e de medicamentos. Médico não é remédio!

    A vinda de médicos cubanos (ou de outros países) não é uma medida que garanta, nem no idealismo mais utópico, a melhora mínima do acesso de saúde a população. Além disso, como garantir que esses profissionais tem conhecimento técnico para atuar no Brasil depois de ingressarem em uma universidade que utiliza critérios políticos como “vestibular” e que só tem duração de 4 anos, baseada em um sistema de saúde completamente diferente do nosso e sem o estudo aprofundado das principais doenças que acometem a população brasileira? Já sei: eles farão um treinamento de 3 semanas nas Universidades Federais! Claro, 3 semanas é o suficiente para conhecer a amplitude do SUS e as especificidades da epidemiologia brasileira. Os médicos passam 6 anos estudando à toa, sendo 2 de internato, a toa.

    Correto, a melhoria das condições de trabalho e a criação de um plano de carreira não garantem a distribuição. Porém, garanti-se menos ainda a melhoria com a importação sem avaliação de competências. Em nenhum país do mundo isso ocorre! Medicina não é subjetividade, requer avaliação rigorosa e competência técnica, além da boa relação e intersubjetividade!

    No mais, é muito fácil ludibriar a população carente aproveitando-se da necessidade para colocar “goela a baixo” a ideia de que o médico vai resolver seus problemas. É assim com todos os programas sociais: medidas paliativas inócuas para resolver problemas estruturais bem mais complexos! O Governo Federal vem reduzindo anualmente os investimentos em saúde e há uma crescente desresponsabilização do mesmo em todos os níveis de complexidade do SUS que se traduz na diretriz municipalizante das políticas de saúde.

    Por fim, realmente há uma grande luta de classe nessa discussão. Ser anti médico tornou-se posicionamento típico de uma pretensa esquerda que é “anti tudo”. Nesse sentido, adotando essa postura, só mostra que é “anti” mais alguma uma coisa: “anti saúde de qualidade para todos”.

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