Rio Grande do Norte, quinta-feira, 25 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 7 de julho de 2013

A democracia não está preparada para o Egito

postado por Laura Lima

Essa semana, Diogo Bercito publicou em sua coluna Orientalíssimo da Folha de Sao Paulo, um texto com o seguinte título: “Os egípcios estão prontos para a democracia?” Antes que algum dia comece a acostumar-me com esse tipo de questionamento, achei por bem dividir como vejo a crueldade enrustida nesse tipo de pergunta.

Vale à pena ponderar se tal indagamento foi feito sobre a Alemanha no fim da Segunda Guerra Mundial. Em tempos recentes não consigo lembrar de outro país que merecesse questionamentos assim do que a Alemanha de então. Pragmaticamente, os alemães germânicos das décadas de 1930 e 1940, no mínimo, apoiavam ou eram conivente com o extermínio de judeus, ciganos, homossexuais, e portadores de deficiência (física ou mental). Mesmo diante de todo tipo de execução e políticas eugênicas colocadas em prática na Europa Ocidental (com o aval explícito ou implícito de tantos milhões) nunca ousou-se a indagar se aquele pais estaria pronto para uma democracia. Pelo contrário, os Estados Unidos investiram pesado e, com isso, ajudaram a Alemanha a tornar-se a economia que é hoje. Da mesma maneira, não me ocorre agora que se tenha questionado a Revolução dos Cravos em Portugal – leavada a cabo, inclusive, com a atuacao central do exército – ou o fim da ditadura de Franco na Espanha. Parece-me que só é válido perguntar se um país está pronto para ser uma democracia se ele estiver fora da Europa e do mundo Anglo-Saxônico.

Pois bem. Acho que so deve-se aceitar que se pergunte se um país da periferia está pronto para ser uma democracia no dia que ousarmos perguntar se os países ditos desenvolvidos e democráticos estão prontos para o mesmo desafio. Nos Estados Unidos, talvez o maior exemplo contemporaneo de um país ‘democrático’, 13.6% da população é negra e/ou hispânica, só que eles correspondem por 39.4% da população carcerária. Alem disso, há pena de morte, e grande parte da população não tem acesso à saúde pública ou educação superior. Aqui na Belgica, um mulher imigrante em situacao legal so tem 45% de chances de conseguir um emprego. Mesmo no Reino Unido, que tem a maior media da UE, nao se chega aos 60%. Esses numeros sao ainda menores se a mulher nao for branca, nao tiver educacao superior, e nao for do leste europeu. A Italia esta a manter a populacao que pede asilo naquele pais em prisoes, pratica tambem adotada na Inglaterra. Do ponto de vista das minorias etnicas, sociais, e religiosas nem a Europa nem os Estados Unidos estariam preparados para uma democracia.

Será, entao, que a pergunta também não seria mais válida lá do que na periferia do poder mundial – que só nas últimas décadas está conseguindo livrar-se de seus ditadores locais (a custos econômicos e sociais altíssimos, diga-se de passagem). Isso já seria razão suficiente para não sair por aí perguntando aos quatro ventos se alguém está preparado para uma democracia. Mas Bencito afirma ainda que a “comunidade internacional” desaprova o golpe que foi dado no Egito. Taí uma expressao confusa. Quem é essa tal de comunidade internacional? A direita europeia e americana que comanda a maioria da grande mídia ? é o G8? O G20? Os países da OCDE? Se for, que ele dê nome aos bois – por que essa tal comunidade internacional e Marco Feliciano têm o mesmo efeito sobre mim: não me representam.

O poeta marxista Bertold Brecht deixou-nos a pequena pérola: ‘pergunte a cada ideia: quem o teu mestre?” No caso em tela, vale à pena ponderar a quem serve perguntar se o Egito estará pronto para ser uma democracia. O maior argumento do tipo de gente que pergunta se o Egito está preparado para uma democracia é que eles tiveram um presidente eleito democraticamente há um ano e deu no que deu. Pôr em dúvida a capacidade de um povo dessa maneira não é só hipócrita, é irresponsável. Hipócrita por supor que a democracia é apenas uma lista de pré-requisitos que devem ser atendidos. Democracia não é isso. O nome disso é aplicativo de celular ou programa de computador – que para ter um é só dispor de requisitos mínimos que tá tudo em ordem. Democracia deve ser vista como processo que, contanto necessite de requisitos básicos (voto direto, eleições democráticas, estado de direito, etc), tem que ser apreendida, negociada e praticada no dia à dia. A literatura especializada já está cansada de explicar que eleições ou a existência de um congresso nacional não são equivalentes a um estado democrático.

O próprio Bencito parece reprovar a atitude do povo egípcio em pedir o fim do governo da Irmandade Muçulmana. Esquece-se, porém, que a política ainda é a arte do possível e que, no momento pós-Mubarak, as únicas possibilidades eram seguir adiante com o exército (e dar-lhe carta branca para mais um ditador) ou eleger um membro da Irmandade. A escolha na verdade, era de curto-prazo e não deveria ser tão difícil de compreender para eleitores brasileiros que muitas vezes votam no candidato que é menos pior. À época era importante mandar um sinal claro para o exército egípcio que era preferível um governo claramente islamista do que um governo das armas. E essa mensagem foi dada. Não esqueçamos que Prestes preferiu dar apoio à Vargas (que anos antes havia enviado Olga Benário, judia, grávida e mulher de Prestes aos campos de concentração nazista) do que à Aliança Liberal. Isso não quis dizer que Prestes e Vargas eram aliados – Prestes apenas optou pelo menor de dois males. Votar na Irmandade, era votar no pior dos dois males que se apresentavam ao povo egipcio naquela oportunidade.

A Irmandade Muçulmana teve sua chance no poder – isso foi a parte democrática da questão. A escolha por Morsi foi democrática – mas o governo dele não foi. Ao chegar no poder, a Irmandade tentou suprimir a todo custo as diferentes correntes políticas que pediram o fim da ditadura enquanto tentavam não somente tornar a sua estada no poder permanente mas também implantar a sharia. Foi um erro de cálculo grosseiro da Irmandade: achar que o país tinha dado carta branca ao islamismo quando, no fundo, o que se tinha feito foi dar uma cartão vermelho ao exército. Prova disso é que muito mais gente veio às ruas (dizem que algo entre 14 e 20 milhões – em um país de 82 milhões de habitantes) para pedir a saída de Morsi. E o exército, agora ciente de que não tem o apoio da população para governar, deu o ultimato ao ex-presidente. Mas Bencito parece mesmo copiar o maniqueísmo conservador. Prefere que se sigam leis “para inglês ver” do que a deposição de um presidente que estava a caminhar a passos largos para uma ditadura islamista. Será que o Egito está pronto para uma democracia? Queria que isso fosse perguntado às mulheres que estão a arriscar serem estupradas mas que, mesmo assim, foram a Praça Tahrir.

Por último, o que queria saber mesmo é se a democracia (imaginada e praticada – mesmo que parcialmente – no e para os países ditos desenvolvidos) está pronta para o Egito. Essa democracia fast-food – que você já sabe o que vai ser antes de abrir a embalagem, essa democracia pronta para o consumo da elite local que poderia, em qualquer regime, ter acesso à educação, saúde, e moradia. Esse big-mac político que até hoje não conseguiu resolver os problemas dos mais excluídos… Não, essa democracia não está preparada para o Egito. É ao povo egípcio que cabe preparar sua própria democracia.

Laura Lima

Laura Lima tem doutorado em Relações Internacionais e Estudos Críticos de Segurança por Aberystwyth University (Reino Unido). Tem bolsa de pós-doutorado do Social Science Research Council (Estados Unidos) no programa “Drugs, Security and Democracy”. Nasceu historiadora e vai morrer potiguar.

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