Rio Grande do Norte, sábado, 20 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 2 de outubro de 2013

A bomba semiótica das pegadinhas do “Fantástico” e “CQC”

postado por Wilson Ferreira

Do blog “Cinema Secreto: Cinegnose

Ensinar lições de moral e cidadania através de simulações. Mais precisamente através de “pegadinhas”, dessa vez “do bem” e na TV. Cuidado! Sob o pretexto de nobres propósitos programas como o “Fantástico” da Globo e “CQC” da Band estão detonando mais uma “bomba semiótica”, dessa vez sob a forma do “infotenimento” (informação + entretenimento), com situações do cotidiano simuladas para flagrar contraventores da ordem, da moral e dos princípios de cidadania para nos ensinar que o bem sempre compensa. Ambos os programas alinham-se à pauta atual imposta pela mídia: a pauta da moralidade e do combate à corrupção, o último papel de protagonismo que lhe resta no cenário político atual.

Vamos desmontar mais uma “bomba semiótica”. Porém esta é de um tipo sofisticado e difícil de lidar semioticamente, pois envolve um elemento “meta”: a simulação, e não simplesmente uma simples manipulação ou encobrimento de fatos como habitualmente estamos acostumados a ver em telejornais ou revistas impressas.

O “Fantástico” estreou recentemente um quadro chamado “Vai Fazer o Quê?” no qual o repórter Ernesto Paglia conduz uma série de “experiências” para descobrir como reagem as pessoas diante de situações polêmicas como pit boys que ofendem um mendigo e tentam expulsá-lo de uma praça pública ou uma cuidadora que maltrata seu paciente idoso. O repórter privilegia mostrar aqueles que atuaram corretamente, pede desculpas ao estresse que os atores criaram na simulação, constrange os cidadãos menos valorosos que nada fizeram com perguntas do tipo “você ficou ali olhando, mas não reagiu…” e discorre como os espectadores devem agir em uma situação dessas.

O “jornalismo justiceiro” do CQC

Ambos os quadros (o primeiro mais soft e o segundo mais agressivo) encaixam-se perfeitamente na pauta atual imposta pela mídia à Política, ao Governo e às manifestações nas ruas: a pauta da moralidade e do combate à corrupção como a grande panaceia que, dizem, tiraria o País do suposto buraco onde se encontra. Por isso essas “pegadinhas do bem” (para contrastar com aquelas produzidas desde os anos 1990 pelo Gugu, João Kleber, Silvio Santos ou Sérgio Mallandro) se transformam em verdadeiras “bombas metonímicas” onde, através das suas explosões, reforçam cognitivamente essa pauta que, para a mídia, parece ser a última que lhe resta para aparentar um papel de protagonismo no atual cenário político.

Cidadania neurótica e cidadania esquizofrência

                A febre das chamadas “pegadinhas” na TV mundial pode ser considerada uma evolução das chamadas “vídeo-cassetadas”: pequenos acidentes familiares e situações inusitadas envolvendo pessoas desatentas e/ou desajeitadas capturadas por câmeras caseiras. O princípio do prazer psíquico do espectador baseado em uma dose de voyeurismo e sadismo não é uma novidade no cinema e audiovisual. Estava presente de forma latente desde o primeiro cinema de Lumière e Meliès.

                Mas as pegadinhas e vídeo-cassetadas são na verdade herdeiras das gags das comédias slapsticks e desenhos animados: o secreto prazer sádico retirado da cumplicidade entre a narrativa e o espectador contra o protagonista – por exemplo, todos sabem que o chão acabou em um abismo, menos o protagonista que continua andando no ar, até se dar contado do que todos já sabem e cair. O nosso prazer sádico está em saber que a vítima é o último a saber.

“Pegadinhas do mal”: pelo menos era fiéis às
suas origens nas gags dos
desenhos animadose filmes slapsticks

Enquanto no “Fantástico” o prazer sádico é envergonhado porque jogado para trás de camadas de discursos de cidadania e virtude, no “CQC” sadismo, desejo de vingança e princípios de cidadania são colocados no mesmo plano. Pensando de forma freudiana, o “Fantástico” nos apresenta uma cidadania neurótica, enquanto o “CQC” constrói uma cidadania esquizofrênica.

Produção de Notícias e Simulações

O Jornalismo é uma produção cultural essencialmente simbólica: signos são editados e montados para criar uma narrativa sobre o mundo, uma certa maneira de enquadramento chamado de “notícia”. Do ponto de vista semiológico é um processo de recorte de uma “narrativa sem fim” do real, para que tenha um sentido – o fato “político”, o “econômico”, o “cultural” etc.

A questão é que na atualidade os sistemas tornam-se cada vez mais complexos porque eles vão criando outros sistemas que vão se sobrepondo até o ponto que eles não mais apenas “recortam” ou “editam” o real, mas agora se auto-referenciam, fecham-se em si mesmos, adquirem uma natureza “meta”: filtram o real a partir dos seus próprios termos, como já analisamos em postagem anterior – veja links abaixo. Eles não mais manipulam e dissimulam, mas agora simulam. Como se fecham em si mesmos, o real não pode mais ser editado ou, se quer, manipulado.

As constantes críticas e desconfianças sobre a manipulação nas edições fizeram os telejornais e a própria TV buscarem na atualidade novas estratégias narrativas que buscam a simulação de realismo a partir de dispositivos que criam efeitos de realidade. Os antigos programas como “Aqui e Agora” do SBT nos anos 1990 foi um dos precursores: carro de reportagem seguindo viaturas policiais, câmeras trepidando, microfones deixados propositalmente abertos para que ouçamos a respiração dramaticamente ofegante do repórter no meio do tiroteio etc.

Programas reality shows, vídeo-cassetadas e “pegadinhas” foram a evolução dessa necessidade televisiva em ser realista para se contrapor à perda de credibilidade pelas críticas de manipulação. Os efeitos de realidade criam uma sensação de “TV verdade” e, ao mesmo tempo, atiçam o prazer sádico-voyeurístico do espectador: é a essência do “infotenimento”.

Os novos quadros do “Fantástico” e do “CQC” são a confirmação de uma tendência que já estava latente nas câmeras ocultas dos telejornais onde o repórter criava situações para induzir o corrupto a confessar o esquema de propinas e tirar os maços de dinheiro dos bolsos e maletas. Aqui, o telejornalismo deixa de ser um sistema semiológico que representa a realidade sob o enquadramento da notícia: agora deve simular ou induzir os fatos, produzir situações. Em outras palavras: a notícia tem que ser criada. Agora o sistema é mais complexo: o problema não está mais na edição, mas na própria fonte.

Existiria uma Simulação da Simulação?

Wilson Ferreira

Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi/São Paulo na área de Estudos da Semiótica. Pesquisador CNPQ do grupo de pesquisas "Cinema e Sagrado no Cinema e Audiovisual e autor dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus. Editor do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" sobre confluências entre Gnosticismo e Sagrado no Cinema, Audiovisual e Cultura Pop em geral.

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