Rio Grande do Norte, quinta-feira, 28 de março de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 25 de dezembro de 2013

Pessoas amáveis e as visitas da saudade

postado por David Rêgo

Por David Rêgo e Paulo Emílio Eurich Maito

 

saudadeHá sempre quem transforme uma vida em preto e branco em algo colorido. Há sempre quem se torne memorável. Há sempre quem se torne amável.

Do dicionário: amável – adjetivo de dois gêneros. Que causa impressão agradável; encantador. Que demonstra delicadeza, cortesia; afável, lisonjeiro, simpático”.

A qualidade de amável traz consigo uma série de benefícios. Faz surgir novos significados e cria novos sentidos a partir de coisas banais. Pessoas amáveis conseguem transformar vinhos baratos e comidas ordinárias em momentos memoráveis. Possuem o poder de fazer redescobrir músicas que já conhecíamos há anos. Tudo se torna novo. Tudo é motivo de diversão. São as pequenas felicidades, dando sentido até ao que é passageiro.
Definir é sempre um problema. Ao mesmo tempo em que especifica-se, limita-se. Melhor do que definir é se deixar falar sobre. Neste sentido, a qualidade de amável não parece ter uma receita. Pode ser… o sorriso ou talvez a maneira de nos fazer sorrir. O jeito peculiar de conseguir nos irritar. O bom humor que pode encantar ou o mau humor que se transforma em charme. O cheiro. A textura da pele. O toque. A voz. A forma de olhar. São vários detalhes que irão variar de indivíduo para indivíduo. Porém, aquilo que não se pode extrair da qualidade de amável é a de deixar saudades. É típico das pessoas amáveis deixarem em seus próximos o sentimento de saudade.

Do dicionário: sau.da.de sf (lat solitate) 1 Recordação nostálgica e suave de pessoas ou coisas distantes, ou de coisas passadas.

wall-89442_640Curiosamente existe em uma biblioteca uma mulher chamada Saudade. Pode-se ler em seu crachá: “Saudade”, com “S” maiúsculo. Pode parecer uma terrível brincadeira dar o nome de Saudade a alguém. Escrever para alguém chamada Saudade geraria dupla dificuldade, já que as frases carregariam em si uma ambiguidade por vezes angustiante: “Saudade, como você está?”. “Saudade, onde você está?” ou “Saudade, voltei para te ver”. Quem sabe até “Saudade, eu te amo”.
Toda criança um dia foge de casa, nem que seja para acampar no jardim. E quando Saudade fugisse? Sairiam seus pais pelas ruas chamando pela Saudade? “- O que os senhores procuram? – A Saudade, que fugiu”. Neste sentido, todos iriam apressar-se para auxiliar a buscar pela saudade, seja ela qual for.
Um mundo sem saudade pode ser terrível. Pode ser triste esquecer quem nos deixou felizes. A saudade cumpre assim o seu papel. Com ou sem consentimento a saudade sempre nos visita. Talvez por somente existir saudade daqueles que nos constroem. Pensamos em nós mesmos, e ao pensar no eu, vemos também o outro que nos construiu, que nos tornou melhores. Fazem-nos lembrar daqueles que nos alegraram. Pouco importa o tempo que passou; nos pegamos vagando em algum pensamento. Podemos até passar meses sem nos recordar. Porém, nunca deixamos de lembrar. Lembranças despertas por algum acidente. Alguma foto ainda escondia dentro de algum livro. Algum cheiro que grudou e insistiu em permanecer. Algum bilhete, um desenho, um presente. Uma música (e sua terrível qualidade de se associar-se a pessoas), um filme. Gostos, temperos e todo tipo de sabores são motivos para saudades e boas lembranças.
Geralmente, norteamos as felicidades de nossas vidas por grandes objetivos. Atribuímos sentido às nossas ações devido aos grandes projetos futuros. A felicidade gerada por uma grande conquista é sempre apresentada como um turbilhão de emoções. Passar no vestibular, conseguir o diploma de graduado, conquistar um emprego desejado, dentre tantas outras grandes conquistas que nos trazem enormes alegrias. Mas, as pequenas felicidades típicas de lembranças bobas talvez sejam as que mais ficam. Pequenas coisas fazem grande diferença. Cheiro de livro novo. Explodir plástico em bolha. Chuva. Comer torta. Cozinhar. Conversar e rir até amanhecer.
Enquanto à Saudade, aquela da biblioteca e do crachá, continua todos os dias auxiliando todos aqueles que buscam conhecimento, com tal paz de espírito que só se pode inferir que absorveu as virtudes do próprio nome.

David Rêgo

Sociólogo, antropólogo e cientista político (UFRN). Professor do ensino médio e superior. Áreas de interesse: Artes marciais, política, movimentos sociais, quadrinhos e tecnologia.

Comments are closed.

Artes

Por uma fluidez das idéias, dos corpos e dos territórios: Okupa-Garden.

Artes

O Evangelho Segundo o Sangue