Rio Grande do Norte, quinta-feira, 25 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 26 de dezembro de 2013

Bairro Neópolis: vida e morte de uma utopia

postado por Túlio Madson

Margeada pela BR-101, quando a rodovia ainda era estreita e sem iluminação, estava a pacata Granja da Vassoura, uma área de 26 hectares distante nove quilômetros do centro de Natal; era denominada assim porque, em plena ditadura, resistia teimosamente uma vassoura com óculos, símbolo da campanha eleitoral de Jânio Quadros, último presidente democraticamente eleito até então.

A granja, pertencente aos irmãos Deodato e Telmo Barreto, foi vendida em 1968, para dar lugar ao primeiro empreendimento da INOCOOP no RN (Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais) um sistema de cooperativas habitacionais presentes em diversos estados brasileiros. Ali seria erguia a “nova cidade”, neópolis em latim, nome decidido coletivamente em uma assembléia dos cooperados.

Viaduto-de-Ponta-Negra-em-1975

Viaduto de Ponta Negra 5 anos após a inauguração do conjunto (1975). Notem a prevalência de áreas verdes onde hoje há shoppings e supermercados.

As políticas públicas de Estado e de governo em Natal segregaram espacialmente a cidade, assim o INOCOOP-RN construía seus conjuntos habitacionais na Zona Sul da cidade, financiados pela Caixa Econômica, destinados geralmente a funcionários públicos e assalariados que podiam comprovar uma renda fixa razoável. Já a COHAB-RN, na época, construiu os seus conjuntos habitacionais na Zona Norte da cidade, destinados, geralmente, a pessoas de baixa renda.

A primeira etapa do conjunto foi entregue em 1970, contendo ao todo 760 casas. O conjunto tinha por pretensão ser o mais democrático de Natal, as casas não eram escolhidas na hora da compra, eram sorteadas. O primeiro sorteio foi realizado no próprio conjunto. Como a distância até o centro da cidade era grande, foram fretados ônibus para levar os futuros moradores ao local do sorteio. O único meio de se chegar ao bairro era o ônibus que fazia a linha para Parnamirim. Durante todo o dia, após o sorteio, houve uma grande festa. Um forma dos futuros moradores se socializarem e conhecerem seus futuros vizinhos.

O conjunto foi projetado para abrigar grandes áreas de uso comum, com uma grande praça central e vários espaços adjacentes, o que reforçava ainda mais seu caráter democrático, com amplos espaços de convivência. Os prédios de uso comum foram construídos pela própria comunidade, como o centro comunitário. Com o tempo, o centro foi adquirindo cada vez menos relevância, hoje em dia, com a exceção de algumas atividades e cursos, ele é inexpressivo.

Dentre os conjuntos habitacionais que surgiram após o conjunto inicial, formando o que hoje chamamos de bairro Neópolis, encontram-se o conjunto Jiqui, construído em 1975, e o conjunto Pirangi, de 1980. Logo após vieram os conjuntos de pequenos apartamentos, como Jardim Botânico, entregue inicialmente em 1982. Além de Parque dos Rios e Serrambi IV em 1985.

OLYMPUS DIGITAL CAMERAAs casas deram lugar aos apartamentos, eram modestos para a época, enormes hoje em dia com seus 82 m², divididos em blocos, três pavimentos cada, quatro apartamentos por andar. De conjunto passaram a ter só o nome, na prática, era cada bloco por si. No espaço onde as crianças brincavam, corriam, interagiam com as dos blocos vizinhos, ergueram-se muros. A sombra das árvores deu lugar a sombra das coberturas metálicas das garagens. Cada bloco tornou-se um gueto, alguns pomposos, revestidos de cerâmica, portões elétricos; outros, mal pintados, maltrapilhos, com portões enferrujados.

Muitos que por lá cresceram estudaram no Jardim Escola Tilim. A escola, que começou em uma casa no conjunto, passou para a avenida Ayrton Senna, virou Itaece Centro Educacional. Lá estudavam boa parte das crianças do bairro, o que em certa medida conferia um senso de identidade entre elas.
Algumas crianças ganhavam as ruas do bairro, desciam com seus carrinhos de rolimã a ladeira da – fábrica – Alpargatas. Jogavam bola nos campinhos de terra, na quadra da praça, ou na rua, entre o intervalo dos carros. As que eram criadas mais “soltas” iam até a lagoa do Jiqui, atravessavam a BR, subiam as dunas, viviam o bairro. No conjunto de casas, cada rua tinha seu bando, no de apartamentos, o bando era divido pelos blocos.

A igreja do bairro, antes da espetacularização da “missa da cura”, era um ponto de encontro dominical para algumas famílias. No entanto, para muitos, o espaço no entorno da igreja era frequentado principalmente na festa da padroeira. Tradição que ainda se conserva no interior, a festa da padroeira do bairro atraia barracas, fliperamas, brincadeiras e jogos diversos. Diversão garantida para as crianças, paquera certa para os adolescentes.

A áurea de bairro familiar, gritos de crianças, visitas dos vizinhos, muros baixos, árvores no quintal, vendinhas de esquina, escolinha do bairro, durou o tempo necessário para formar uma geração.

A cidade alcançou Neópolis, com a ampliação do acesso viário, com os shoppings, supermercados. De periferia para centro. O progresso, implacável, ergueu edifícios, lojas, tornou velha a cidade nova. Pela avenida Ayrton Senna surgem novas cidades, novas neópolis, muradas, verticais, desumanas.

Em algumas casas, no velho conjunto, senhorinhas aguam suas plantas, incólumes à mudança, envoltas em sua casa, sua família, suas amigas de longa data, seu bairro. Para elas, a cidade ainda é nova, o bairro ainda é seu. Para elas, Neópolis ainda não morreu…

Túlio Madson

Colunista na Carta Potiguar desde 2011. Professor e doutorando em Ética e Filosofia Política pela mesma instituição. Péssimo em autodescrições. Email: tuliomadson@hotmail.com

6 Responses

  1. Ewerton Souza disse:

    Muito bom o texto, me fez lembrar dos velhos tempo que não voltam mais!

  2. Wellington Souza disse:

    Faltou mencionar o famoso NIRA DRINK’S, palco da iniciação de muitos jovens.

  3. Guette disse:

    Gostei muito do texto. É daqueles denominados “com sabor de nostalgia”. Na leitura dele, senti o cheiro de terra molhada, de quando na chuva corríamos pelas calçadas ou íamos para a pracinha do bairro, nos arredores do “Conselho” pra brincar de polícia e ladrão; do então desafio de uma geração de subir na mangueira de Seu Pascoal, de roupar goiabas na casa de Seu Nicolau, de subir no jambeiro de Tia Nilza e até mesmo nos das casas de Ilanna e Viviane ou de Fernanda rsrsrrssrrsrs esses eram desafios com sabor da mais alta aventura. Assim também, rememorei outras tantas brincadeiras saudáveis de minha infância neopolitana. Ainda revivi as conversas de beira de calçada na Rua Amapá que adentravam a tenra madrugada, recheadas de alegria, confiança e muitas risadas; das fugidas para a Rua Acre para conversar com amigos que hoje são mais que isso, são irmãos. Irmãos de sangue, de suor, de lágrimas, de risos.
    E também me encheu de tristeza ao lembrar que tudo isso se foi, vividos por último por minha geração. Triste por meu bairro tão querido, testemunha de minha história dolorosa e de vitórias, hoje se encontrar tomado por gangues rivais, que determinam o toque de recolher de seus moradores. Por ver as então casas de muros acessíveis e árvores frutíferas, tomadas por muros cada vez mais altos, varandas que mais me lembram celas e cercas elétricas. Triste por ter entender que, em nome do progresso foi determinado a morte das árvores, a morte da liberdade, a morte de uma história.

    • Cristina Pires disse:

      Que saudades enormes sinto agora amiga, vim morar aqui no ano de 1970 e moro até hoje. Aqui cresci e vi meus filhos crescerem, eles ainda provaram da tal liberdade, de subir nas mangueiras e tomar banho na Lagoa do Jiqui, infelizmente meus netos não tem o que a gente teve, mas meu amor por Neópolis continua firme, forte e eterno. Bjos amiga!

  4. Sandro Titãs disse:

    Tudo isso me faz lembrar muitas Histórias.

  5. Eliana Lucia Dantas Gamble disse:

    Retrato fiel de um bairro com gostinho de saudade!

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