Rio Grande do Norte, terça-feira, 16 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 18 de junho de 2014

A graça de acompanhar a Copa

postado por Lázaro Barbosa

Tive grandes dificuldades em definir o título deste texto. O mote, de cara, foram dois vídeos que estão circulando por aí. O primeiro (o que vi primeiro, no caso) foi o jornalista Eduardo Bueno (tradutor de Kerouac no Brasil – e estudioso do Nordeste, acreditem se puderem) se referindo ao Nordeste como “aquela bosta”, acrescentando em seguida que aquilo era só uma piada. O segundo foi a resposta eloquente de Hulk à pergunta de um jornalista (Leonardo Baran) sobre o Nordeste ter um povo engraçado, com sotaque engraçado, “especialmente os cearenses”. Este último teve repercussão imediata, e o jornalista publicou um mea culpa em seu Facebook.

Falei do mote, né? Só que o problema é que eu não conseguiria falar apenas de humor neste texto. Não pude deixar de pensar, por exemplo, nos protestos que estão rolando contra a Copa (e que não são de agora) e nas greves que pegaram carona com o evento. Ontem, enquanto começava a escrever, tinha uma galera em frente ao Midway protestando. Minha preocupação maior não é com a legitimidade dos protestos. Existe, de fato, uma falta de infraestrutura básica no País, que culminou, aqui em Natal, com o deslizamento de terra em Mãe Luiza, abrindo uma cratera assombrosa no meio da rua Guanabara e deixando famílias desabrigadas. Nem os manifestantes, nem os desabrigados, vão torcer pelo Brasil. Também não posso deixar de lembrar o grande atentado à soberania nacional que é a Copa – ouso dizer, maior até do que a tentativa de usurpar a Base Aérea de Alcântara, por parte dos Estados Unidos, que por pouco não recebiam de mãos beijadas por FHC. A quantidade de ambulantes que não vão ganhar um extra, as chantagens contra festas no período da competição, e o cúmulo – o patenteamento, pela FIFA, de mais de duzentas palavras, de modo a proibir seu uso em eventos que não tenham relação com a Copa até o fim do ano! Não vou me delongar nos detalhes que motivam os protestos contra a copa de futebol, que foram bem elencados neste texto de Tomaz Amorim Izabel. Quero abordar outra coisa.

Até a abertura da Copa propriamente dita, eu estava indeciso sobre o que fazer. Adoro esportes e jogos em geral. Já pratiquei atletismo e xadrez; jogo até porrinha se tiver interessados. Mas também me preocupo com a preparação do País para a competição e com os contrastes que ela está evidenciando. Em todo caso, toquei o foda-se na quinta passada e fui ver o jogo de abertura contra a Croácia com minha companheira. Detalhe: ela não gosta de esportes e conseguiu ficar acordada a partida inteira.

Pois bem: o que tem a esquerda que leva o #NãoVaiTerCopa na ponta da língua, nos estandartes, nas pichações, com os vídeos acima? Ora, eu sei que essa esquerda não é ingênua quanto ao aspecto político do evento. Eu diria, na verdade, que o defeito dessa esquerda é justamente o contrário: ela sofre de uma clarividência aguda. Ver os detalhes perversos da Copa do Mundo, em tese, não é nem bom nem mau – para isso não é necessário ser de esquerda, e as corporações que estão patrocinando não são imbecis. O que me preocupa com a clarividência por parte da esquerda é o cúmulo a que chegam: por pura bravata, tem gente torcendo contra o Brasil. Pior – alguns ativistas em São Paulo foram à favela do Moinho conclamar os moradores a seguirem seu exemplo (o texto é de José Antônio Lima).

É aí que mora a graça de acompanhar a Copa: o contraste entre os discursos e as ações, além do paternalismo político. Nisso as declarações de Eduardo Bueno, de Leonardo Baran e dos ativistas na favela se encontram. Os ativistas, é claro, não queriam a Copa (pelo menos não do modo como ela foi organizada). Mas daí a querer que os moradores não torçam pelo Brasil? Eu fico pensando aqui: por que diabos eles foram na favela? Pessoalmente, imagino que vários deles, sem dúvida, chegaram ao extremo de imaginar o espectador da Copa com um nariz de palhaço, mas não se ligam no próprio nariz de palhaço que usaram quando pediram que os moradores da favela torcessem contra o Brasil. Muitos desses moradores sequer têm dinheiro pra pagar uma passagem e se deslocarem aos pontos de encontro desses protestos. Não bastasse o paternalismo dos governantes (principalmente dos governantes de direita), os moradores ainda tiverem que testemunhar o paternalismo de esquerda dos ativistas. José Antônio Lima, no texto citado acima, vai direto na ferida: “Ao ignorar a alegria que a Copa do Mundo traz e negar tal felicidade, os ativistas mostram desconhecer a vida real e excluem quem deveriam incluir.” Não questiono essa esquerda pela coragem de organizar os protestos, mas pela babaquice desse discurso anti-brasileiro. Esse discurso babaca, se ampliado nas mesmas proporções que os protestos, acabará por torná-los infrutíferos aos olhos da população carente. “É perfeitamente possível amar o futebol, torcer pela seleção brasileira e parar para ver a Copa do Mundo sem que isso implique alienação ou apoio ao sistema e aos absurdos produzidos por ele. Para os ativistas que foram à favela do Moinho, isso é uma contradição. Para os moradores da comunidade, é a vida normal.”

Agora voltemos aos vídeos, a começar por Eduardo Bueno. Não sabia desse cara até dar uma olhada rápida no Google, quando soube que ele traduziu On The Road de Kerouac e escreveu alguns livros sobre o Brasil Colônia. (Mentira: acabei me lembrando que ele participou do especial sobre Mamonas Assassinas que saiu na Globo em 2008 e revi um dia desses, já que ele foi o biógrafo do grupo; mas isso é outra coisa.) Em um trecho do programa Extra Ordinários, da SporTV, ele solta uma palhinha sobre o tema (não vi o vídeo completo, mas era sobre a presença da Holanda e a produção e açúcar) e, pegando um gancho na fala de Xico Sá, não deixa de comentar: “(…) a área mais rica do Brasil, aquela bosta lá do Nordeste (…)”. O próprio Xico Sá riu da fala de Eduardo Bueno, que se justificou em seguida, dizendo que era uma piada. Xico Sá, nascido no interior do Ceará, na bosta do Nordeste, fazendo eco a um comentário bairrista como o de Eduardo Bueno… É o mesmo bairrismo de uma gaúcha que encontrei no halloween da Praça do Gringo’s, desmerecendo o futebol do Nordeste e dizendo que o futebol gaúcho tem mais tradição. Francamente, não tenho paciência com atitudes dessa espécie. E o tom dela foi o mesmo do jornalista: falou como se não houvesse um comprometimento maior com o próprio discurso.

Sou doido pra voltar pra Salvador mas, dentre as coisas boas que me aconteceram por morar em Natal, uma delas foi tomar progressiva aversão e distanciamento desse bairrismo (que também afeta meus conterrâneos, especialmente se considerarmos que Salvador foi a primeira capital do Brasil). Entendo que o Rio Grande do Sul não foi, inicialmente, colonizado por portugueses; sua história com Portugal e com o Brasil é bem delicada, passando por motivos variados de desentendimento entre colonos e as coroas portuguesa e brasileira. Travou uma guerra (a Guerra dos Farrapos) de 1835 a 1845, promulgando a República Rio-Grandense, mas acabou sendo anexado à força pelo Brasil ao final do conflito. Daí que vários gaúchos têm como slogan “O Sul é o meu país”, testemunhando a força da história na vida deles. Vi, em algum lugar (não consigo lembrar nem achar o link da notícia), que os gaúchos são os que mais apreciam a história e as tradições de seu próprio estado – o que, dependendo da pessoa, se traduz num bairrismo exacerbado. Dei um pulo em Porto Alegre em 2010, por ocasião do Fórum Social Mundial, e gostei da parte que vi; por isso, pretendo retornar lá pra apreciar melhor a cidade. Agora, se neguinho vier com piadinha, querendo me imitar, e se chegar com a porra da geografia tosca deles referindo-se ao Nordeste como Norte, vai passar por idiota por mim fácil. E se continuar com a palhaçada, corto logo contato.

Por outro lado, Hulk deu uma rasteira em Leonardo Baran pela pergunta estúpida deste. Indagado sobre qual o diferencial do povo nordestino – esse povo engraçado (especialmente o cearense), diferenciado em relação ao resto do País – quando os jogos do Brasil acontecem aqui, Hulk respondeu, claro como água, que o nordestino não faz graça pra ninguém, sublinhando um fato que, provavelmente, passou despercebido pelo jornalista: grande parte dos jogadores da seleção brasileira que atuam no Brasil não joga no Nordeste. Baran, oportunamente, postou um mea culpa em seu Facebook, pedindo perdão pelo tom inadequado com que fez a pergunta. Os comentários foram variados, mas grande parte dos usuários não sentiu firmeza na declaração (eu mesmo não senti), e teve um que matou na unha: “errando ou não éo que vc acha do nordestino” (sic); outros foram agressivos até. O mea culpa não funcionou, basicamente, por dois motivos: primeiro, pelo discurso batido que o jornalista soltou; segundo, pela formação profissional que lhe é exigida. Mas talvez eu esteja exagerando, porque antes um mea culpa insuficiente do que nenhum. Lembro que, em 2009, fiz intercâmbio na UFRJ por um semestre. Dentre as sucessivas papagaiadas que ouvi de cariocas (“bom dia” com um “d” retroflexo, diferente de meu sotaque original, gente elogiando meu sotaque e por aí vai), esta, provavelmente, vai pro rol da mais imbecil que ouvi por lá. Uma mulher de filosofia, comentando um assunto (não lembro qual), chamou um cara de paraíba. Como sabemos, “paraíba” é o termo pejorativo carioca que se refere à gente do Nordeste (Norte, pra eles). Objetei o discurso dela, mas ela me veio com a seguinte lorota: “‘paraíba’ não é nordestino, ‘paraíba’ é um estilo de vida”. Estilo de vida do Nordeste, aquela bosta… Pena que quem tava cheia de bosta era ela e sua boca (assim como Eduardo Bueno e Leonardo Baran).

Existe uma teoria do humor chamada “teoria da incongruência”. De acordo com essa teoria, o humor surge quando duas ideias ou atitudes não se ajustam entre si, provocando um conflito que, dependendo das circunstâncias, é visto como engraçado. Só que é necessário ponderar duas coisas: primeiro, “engraçado” aqui não é necessariamente aquilo que leva ao riso, muito menos que diverte; segundo, o simples fato de se rir de algo não exige sempre adesão daquele que ri. O que existe de humorístico, a meu ver, nas atitudes de Eduardo Bueno, Leonardo Baran e dos ativistas na favela é, como falei acima, o contraste entre o discurso e as atitudes. No caso de Eduardo Bueno, o contraste entre a piada (?) que fez com o Nordeste (um gesto evidentemente agressivo) e a desculpa que deu quando proferiu o disparate; no de Leonardo Baran, o contraste entre sua pergunta, bem acintosa, e a resposta firme e polida de Hulk; no caso dos ativistas, o contraste entre o ideário deles e o dos moradores. Agora, o que há de humor nesses três casos é, sobretudo, a estupidez da atitude desses caras. Provo, assim, ao contrário dos desiludidos com o Brasil, que há sim graça em acompanhar a Copa. Pois (retomando a ideia de Millôr Fernandes) se o homem é o único animal que ri, é rindo que ele mostra o animal que é.

***

Mais motivos pra achar graça:

Sobre a copa e as vaia à Dilma (aqui na Carta Potiguar) – o atestado de palhaço que a elite no Itaquerão recebeu por vaiar Dilma, mesmo com a queda na popularidade dela, acabou reforçando sua simpatia por quem já aprova seu governo.

O gol mais belo escondido, mas não olvidado (também na Carta Potiguar) – a Globo abafou, mas não tinha como deixar o experimento de Miguel Nicolelis passar despercebido. A longo prazo, se o Brasil souber aproveitar, será uma excelente vitória política.

Copa Total – álibis, gangorras e guilhotinas do Caos (adivinha?) – uma ode bakhtin-batailleana à Copa do Mundo. Acho que esta frase resume muito bem o espírito de meu texto: “Ao não nos identificarmos com a Copa (adorando-a ou a odiando), logramos permanecer espirituosos e irônicos para com o tamanho dadivoso e terrível das suas sementes”.

Custo da Copa equivale a um mês de gastos com educação (Folha de São Paulo) – bom, o título diz por si só.

Copa do Mundo, aspirinas e urubus (CartaCapital) – além da palhaçada que é ser categoricamente contra a Copa, também o é ser a favor. Parece óbvio, mas apreciar o mundial de futebol sem cair na alienação e no extremismo faz toda a diferença.

Marcelo sofre racismo após gol contra: “tinha que ser preto” (Portal Terra) – tem duas coisas que acho engraçado nisso tudo: o melhor jogador de futebol da história é brasileiro e preto, mas ele não fez porra nenhuma em prol de sua classe (pelo contrário). Se alguém souber dele comentando o episódio, me avise.

Lázaro Barbosa

Nômade, cosmopolita, nerd e chato.

2 Responses

  1. Vantie Oliveira disse:

    Mais motivos para achar graça – mas nem tanto -, Lázaro: o experimento que Miguel Nicolelis apresentou na abertura da Copa utilizou de uma técnica que não é aquela proposta por Nicolelis, mas sim a preferida de outro neurocientista que nem brasileiro é… O custo da Copa – mais de 30 bilhões! – equivale muitas vezes mais ao valor da instalação do mais novo camping da UFRN (que é de apenas algumas centenas de milhares de reais)… O contraste entre suas atitudes de, por um lado, se sentir indignado com manifestações de bairrismos e, por outro lado, criticar a crítica prática que os manifestantes anti-copa vem fazendo contra o nacionalismo (afinal, a diferença entre bairrismos e nacionalismos é apenas uma questão de dimensão: o município, o Estado ou o país)… Por fim, o que há de “engraçado” no fato de você se declarar “não identificado”, “espirituoso” e “irônico” com relação à Copa e, por outro lado, acabar fazendo, de fato, uma defesa do principal aliado da FIFA nesta meganegociata: o Governo Federal!

  2. Lázaro Barbosa disse:

    Vantiê, desculpa pela demora em responder seu comentário, só vim ver realmente agora (não lembro de ter chegado nenhuma notificação por e-mail). Não sei até que ponto vai esse contraste porque muito do que vejo nas manifestações anti-nacionalistas acaba sendo o reverso do próprio nacionalismo. É que nem chegar um bando de integralistas em sua casa e querer convencer você de que sua atitude não é adequada e que você precisa, sim, ~torcer por seu País~. Não vejo diferença substancial em nenhum dos lados, a não ser as estratégias adotadas e o sentido em que se encaminham. Além de motivos políticos pra me distanciar dessas posições, ainda tem o existencial, que é o fato mesmo de me considerar um exilado de Salvador – não tenho dúvidas de que o fato de retornar pra lá pode não significar algo exatamente agradável pra mim. Daí não me identificar com o bairrismo de Eduardo Bueno nem com as manifestações anti-copa, especificamente no que elas possuem de antinacionalismo. É bem verdade que é difícil desvincular o sentimento de nacionalismo das políticas efetivas na produção do evento, mas não sei até que ponto faz efeito atacar o nacionalismo brasileiro pra denunciar os disparates da política no Brasil, tanto no plano institucional quanto fora dele. Atacar a Copa, a meu ver, surte mais efeito se considerarmos as negociatas realmente feitas e as desigualdades materiais na população do que pedir pros moradores de uma favela torcerem pela Croácia. Isso é puro ressentimento; já que se trata de ser contrário ao nacionalismo, pra que defender uma outra nação? Não faz o menor sentido!

    Daí que, chegando ao segundo ponto de seu comentário, discordo de sua interpretação de haver uma defesa fatual do Governo Federal em meu texto (estou supondo que sua interpretação se baseie nas entrelinhas dele). Ora, como pode haver uma defesa do Governo Federal no momento mesmo que considero a Copa como atentado à soberania brasileira? Não concordar com a Copa não implica necessariamente um afastamento resoluto da competição, principalmente se você considerar meu interesse em esportes como um todo; nessa hora, me interessa mais o processo do jogo (os gols, a torcida, o fair play ou a falta dele). Provavelmente, da mesma forma como você aponta uma defesa do Governo Federal, pode aparecer alguém que me recrimine justamente por não apoiar nem o governo, nem o nacionalismo. Não me interessa apoiar nenhuma das duas posturas. É claro que não me concentrei em pontos específicos relacionados à postura dos poderes públicos brasileiros, mas nem isso bastaria pra transformar meu texto nessa defesa. Um abraço!

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