Rio Grande do Norte, sexta-feira, 19 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 1 de outubro de 2014

Mulheres de Miyazaki: Nausicaä do Vale do Vento

postado por Loa Antunes

“Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam, nem te consola o
canto dos grilos,”
T.S. Eliot, Terra Desolada

Nausicaä do Vale do Vento não é o filme inaugural de Hayao Miyazaki nem seu primeiro trabalho como animador e diretor, antes disso ele já havia dirigido O Castelo de Cagliostro, Sherlock Hound, baseado na obra de Conan Doyle, e trabalhado em outros estúdios de animação. Portanto, essa série de postagens não irá abarcar todos os trabalhos deste gênio, mas somente aqueles longas em que suas protagonistas sejam mais emblemáticas de um modelo cultural anti-machista, que fujam propositalmente dos espaços comumente destinados às mulheres no cinema e na sociedade. Nausicaä é a primeira obra onde uma mulher tem tanta força pro diretor, abre um coletivo de personagens feministas que virão a ser desenhadas mais tarde, mulheres independentes, fortes, que escapam aos padrões de gênero e aos espaços em que “deveriam” ocupar.

Nausicaä foi lançado em 1984, quando a Disney já havia distribuído no ocidente Branca de Neve e os Sete Anões (1937) e Cinderela (1950), modelos de princesas prontos para atender às expectativas da sociedade estadunidense acerca das mulheres na primeira metade do século XX, educando as meninas a serem mulheres delicadas, meigas, frágeis, amáveis, graciosas, gentis, elegantes… aptas a se casarem com um bom marido, coadjuvantes em sua própria história. Só em 1989 a Disney lançaria A Pequena Sereia como uma tímida reposta às críticas de suas altezas e aos sinônimos que associava às suas mulheres. Mas mesmo com Ariel, outra representação sobre as mulheres, que é Nausicaä do Vale do Vento, permanece emblemática e poderosa, figurando como referência na ruptura dos padrões de gêneros representados pela indústria cinematográfica.

04thora003030No mundo onde o filme se passa, “muitos séculos atrás, uma poderosa civilização cresceu a partir da margem ocidental da Eurásia se expandido pela face da Terra, saqueando o solo de suas riquezas, poluindo o ar e remodelando as formas de vida à vontade. Essa gigantesca sociedade industrial atingiu seu auge milhares de anos após sua fundação, para entrar num abrupto e violento declínio. As cidades queimaram em piras que erguiam fumaças tóxicas na guerra lembrada como “os sete dias de fogo”. Toda aquela complexa e sofisticada superestrutura foi perdida; quase toda a superfície do planeta fora transformada numa desolação estérea. Aquela civilização industrial nunca mais foi reconstruída como era em seus dias de crepúsculo.” No período em que Nausicaä vive e o filme se passa, a raça humana luta contra a expansão de uma gigantesca floresta venenosa que crescera a partir das terras devastadas e peçonhentas, conhecida como “Mar da Corrupção”, absolutamente nociva aos homens e mulheres, repleta de miasmas tóxicos capazes de matar em poucos minutos aqueles que respirarem seus ares. Os insetos que vivem ali são agressivos e indomesticáveis, um único esporo de uma planta do Fukai, como é nomeada a floresta, se germinado em terra habitável aos humanos, é capaz de fazer crescer no local um irrefreável reflorestamento. Esse processo tem devastado por séculos cidades remanescentes inteiras, e toda tentativa de queimar a floresta gera a revolta dos Ohms, uma espécie de “rei dos insetos”, que investem em bandos gigantescos contra a humanidade, transformando países em ruínas e só parando quando morrem de exaustão. Quando morrem, contudo, seus corpos tornam-se nascedouros de novas florestas Fukai, e o processo continua interminavelmente. Trata-se de um mundo pós-apocalíptico na iminência de um novo apocalipse.

Todos os irmãos da princesa Nausicaä morreram eventualmente de doenças provocadas pelos miasmas do Fukai. Seu pai, o rei, está acamado esperando a hora da morte graças às mesmas doenças. A princesa é amada no pequeno reino, o Vale do Vento, praticamente uma vila localizada num vale protegido por ventos que sopram do mar ácido e não do Fukai, e portanto são seguros, possibilitando que seus habitantes levem uma vida pacata de camponeses.

Nas primeiras cenas do longa somos apresentados à protagonista que voa em um curioso planador, é apaixonada por aviação e por estudar o Fukai. Diferente dos demais ela considera aquela fauna e flora belíssimas e as examina de perto. Enquanto Nausicaä está na floresta apreciando aquela beleza alienígena e mortal ouve um tiro, reconhece como um pedido de socorro e salva um homem do ataque de um Ohm. Já nos primeiros minutos o diretor consegue subverter qualquer expectativa construída que teríamos de uma princesa, uma mulher delicada em refinados vestidos procurando um marido ideal. Nausicaä não é apenas uma guerreira de ocasião, ela ama o espaço público (não deseja levar uma vida enfurnada no castelo), se aventura onde poucos têm coragem de ir, porta armas de fogo e armas brancas com que luta muito bem, atravessa desertos, salva homens, pesquisa a biologia da floresta e voa.

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Nausicaä do Vale do Vento na floresta de Fukai

A existência bucólica do Vale do Vento é abalada quando, de repente, uma gigantesca aeronave cai próxima da vila matando todos os seus tripulantes, deixando apenas uma garotinha entre a vida e morte, que é resgatada por Nausicaä e, ainda agonizando, se apresenta como Rastel, princesa de Pejite, e pergunta sobre a carga que o avião levava. Nausicaä a tranquiliza de que toda a carga havia sido queimada na explosão gerada pelo impacto e a menina morre satisfeita com esta informação. Contudo, “a carga” é na verdade um casulo de um antigo “deus soldado”, uma criatura humanoide imensa fabricada pela antiga civilização hiperindustrial e que tinha sido usada como arma de destruição em massa. Foram esses deuses soldados os responsáveis pelos “Sete Dias de Fogo”, queimando países com seu poder bélico. Fica claro o paralelo que o diretor constrói com as bombas nucleares que devastaram duas cidades japonesas e que puseram fim a uma guerra de proporções mundiais. Também Miyazaki foi acometido pela Segunda Guerra porque seus familiares produziam caças pro Japão. Desde Nausicaä a temática da guerra será uma recorrência na obra de Miyazaki, seus personagens são comumente acometidos por um conflito que vem de longe e do qual não faziam parte, tendo então que lutar numa guerra que não provocaram e não desejaram.

Com o casulo-útero do deus soldado no Vale do Vento, naves torumekianas invadem o reino em busca daquela arma e se fixam ali, posto que o alvéolo não poderia ser transportado num avião devido ao seu peso, motivo pelo qual o outro caiu. É no Vale que o deus soldado deverá ser gestado para ser usado na queima do Fukai… incinerar todas as florestas e “tomar o mundo humano de volta” é o plano de Torumekia, uma poderosa nação militar. Nausicaä resiste ao ataque, luta bravamente, mata homens, mas no final tem que se render e é levada prisioneira de guerra para Torumekia.

Antes de deixar seu castelo, contudo, Nausicaä é descoberta por Mestre Yupa, o homem a quem ela salva nos primeiros instantes do filme, num quarto secreto onde ela cultiva sem que mais ninguém saiba plantas do Fukai. Yupa se surpreende com o fato de que ali as plantas não emitem gases tóxicos e Nausicaä explica que descobrira o porquê: quando as plantas são semeadas com a água pura que o moinho do castelo trás das profundezas e com a terra de lá, quando as plantas são cultivadas em solo e água limpa elas não produzem venenos. Miyazaki aloca sua protagonista num espaço definitivamente não associado as mulheres até recentemente: o campo científico. Num mundo onde poucas mulheres cientistas e pesquisadoras são lembradas como grandes nomes, onde mesmo com o expressivo número de mulheres nas universidades elas são subrepresentadas nos lugares acadêmicos de poder, Hayao Miyazaki contraria mais uma vez os espaços onde as mulheres têm pouca representatividade no imaginário machista, desenhando uma moça cientista fazendo uma descoberta revolucionária para a mentalidade do resto do mundo.

Kushana, princesa de Torumekia

Kushana, princesa de Torumekia

Posteriormente Nausicaä do Vale do Vento é levada como refém de guerra por naves torumekianas, que são atacadas no caminho. A maior parte delas é abatida, mas Nausicaä consegue escapar num caça que pertencia ao Vale. Na fuga salva também sua arquiinimiga Kushana, princesa imperial de Torumekia e capitã do exército que invadiu o Vale. Kushana é o contraponto de Nausicaä, odeia o Fukai, não compreende sua natureza, deseja incendiar tudo e inflamar uma guerra não apenas contra a floresta mas contra outros reinos para consolidar e manter o poder de seu país. Esta é também outra representação feminina de Miyazaki que chama a atenção: Kushana é marcada pela força, pela virilidade, pela altivez, embora caminhando na contramão dos ideais do diretor (bucólicos, rurais, anti-industriais), ela não é retratada como uma vilã vil e sem coração, uma bruxa má pronta para destruir a “boazinha” princesa Nausicaä, mas sim como uma pessoa que faz aquilo que acha correto de acordo com o mundo em que viveu. Kushana também é protetora dos ideais de seu povo e o faz com perfeição normalmente apresentada no cinema como sendo um dom dos homens.

O caça em que elas fogem aterrissa no Fukai, juntamente com o outro que abateu as naves torumekianas em que Nausicaä era transportada prisioneira, e Nausicaä fica curiosa de saber quem é o homem que o dirige e porque ele fez aquilo. Assim ela vai atrás dele, que está sendo atacado por insetos revoltados com a queda dos aviões na floresta. Depois de uma fuga na qual ambos são derrubados do planador, caem num solo de areia movediça. Esse acidente os leva para uma caverna abaixo do Fukai onde o ar é limpo. Ali Nausicaä faz mais uma descoberta “científica”, percebe que as plantas do Fukai quando morrem e se fossilizam viram cristais de areia, e as árvores mortas cristalizam e conduzem água limpa pro subsolo. O Fukai é venenoso justamente porque absorve os tóxicos da terra e do ar e os purificam ao longo da vida. Assim, na verdade, o Mar da Corrupção está filtrando a Terra dos despojos insalubres deixados pela antiga civilização industrial e sua guerra dos Sete Dias de Fogo. Referência direta, claro, à radiação pós-bombas nucleares que geram deformidades e impedem a vida de florescer.

Com essa descoberta em mente ambos saem da floresta e vão a Pejite, mas quando lá chegam descobrem mais cidades devastadas. Ali uma nave pejitiana pousa, seus tripulantes conhecem o garoto que está com Nausicaä, é Asbel, príncipe de Pejite. Uma nave de seu país está saindo dali para invadir o Vale do Vento e tomar o controle do deus guerreiro. Nausicaä se revolta, explica a função ecológica do Fukai, tenta fugir, mas é impedida e levada prisioneira. O momento do cárcere é também representativo do feminismo nesta obra. Nausicaä é salva da cela graças a rainha de Pejite e uma garota, que alegando visita-la para lhe levar água, trocam de identidade e a princesa Nausicaä sai se passando pela outra garotinha. É levada para uma ala do avião onde estão várias mulheres. Aqui é exposto a sororidade delas, a ajuda mutua entre mulheres para com suas demais em situação de opressão. Essa sororidade é cultivada por diversos grupos feministas, lutando contra uma educação machista que ensina as mulheres a concorrerem umas com as outras, a tomar suas demais como inimigas iminentes, possíveis riscos ao casamento e ao namoro, num mundo onde a única aspiração ensinada a elas é o matrimônio com um “príncipe encantado”.

Não me prolongarei na história para não estender o texto e estragar o final do filme para os que ainda não assistiram, mas devo iniciar o fim desse artigo dizendo que Nausicaä do Vale do Vento fez imenso sucesso em seu lançamento, e graças a esse sucesso foi que Hayao Miyazaki, juntamente com Isao Takahata, com quem já havia trabalhado, fundaram o Estúdio Ghibli. Essa pequena obra prima do diretor, embora não seja seu melhor filme, o coloca numa posição de grande animador, que futuramente será reconhecido como o maior diretor de animação do Japão e do mundo. É nesta obra que tem início as grandes recorrências que marcarão seus longas-metragens: a guerra, o debate ecológico, a jornada do herói, o adultecimento, personagens femininas… além da estética steampunk.

Nausicaä e Asbel na caverna abaixo do Fukai.

Nausicaä e Asbel na caverna abaixo do Fukai.

Nausicaä do Vale do Vento serviu posteriormente de inspiração para muitos diretores, inclusive para James Cameron e seu Avatar, em que este diretor alegou se inspirar no Fukai para desenhar o ecossistema do planeta Pandora. É conhecido que, compondo a trilogia Matrix, os irmãos Wachowski basearam-se em diversas obras da literatura de ficção científica, em especial no subgênero cyberpunk, mas também em alguns animes como Ghost In The Shell e Serial Experiments Lain. Assim é que Andy e Lana Wachowski fizeram uma bela homenagem a Nausicaä do Vale do Vento nas cenas finais do último filme de sua trilogia. Quando Neo alcança o amago da Cidade das Máquinas, as cenas de seu encontro com o Deus Ex Machina lembram em muito as florestas do Fukai de Miyazaki, tanto na aparência insectóide dos robôs, quanto nos elementos que compõem aquela atmosfera. Há um paralelo entre a Cidade e o Fukai: ambos são nocivos aos humanos, pós-apocalípticos, dotado de uma inteligência anti-humana, foram criados pela humanidade e são independentes de nós: “We don’t need you! We need nothing!”. Até as Sentinelas lembram os Ohms.

Nausicaä é, na minha opinião, o segundo melhor filme com temática ecológica já feito, perdendo somente para Princesa Mononoke, também de Miyazaki. Ele ganha não pelo conteúdo “científico” e pelo tom “alarmista” que marcam produções ocidentais do gênero, mas por fazer um debate que informa pela sensação, transmitido como forma de arte e não de didática. É preciso sensibilidade para compreender as motivações de todos os personagens, tanto as do Fukai e dos Ohm quanto as de Pejite e Torumekia. Caso fosse um filme da Disney as mensagens estariam claras e expostas num musical: “não desmate”, “abrace as árvores”, “não façam guerra”. Miyazaki é também um trunfo contra um discurso ocidental reforçado pela Disney, contraria a ideia de que as crianças são incapazes de entender mensagens e emoções complexas. A cada lançamento de seus filmes as salas de cinema do Japão se enchem de pessoas de todas as idades, muitas delas crianças deslumbrando-se com suas produções.

Miyazaki nos lembra que podemos ser mais do que as normas nos impõe. Que é possível lutar e resistir. Nausicaä é um novo sopro no cinema de animação, como sugeriria o título do estúdio que se ergueria de seu sucesso.

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Loa Antunes

Doutorando em Ciências Sociais (Ciência Política) — UFRN Policial Militar — PM-RN. Cientista social.

2 Responses

  1. Eros Gibson disse:

    Confesso que dos filmes de Miyazaki, Nausicaä foi um dos poucos, se não o único, que ainda não vi. Depois de ler este artigo arrependo-me de ainda não ter assistido. Li e senti que poderia continuar a ler, como se o tempo mal tivesse passado. Espero que continue escrevendo, fez um excelente e apaixonante escrito. Abraços!

  2. Thiago Leite disse:

    Nem sei por que ainda não vi esse filme! Muitas recorrências com outros filmes de Miyazaki, como o tema ecológico tratado de forma inteligente e o fato de as antagonistas não caírem no estereótipo maniqueísta da pessoa cujo interesse é o mal (como Yubaba em Chihiro e Eboshi em Mononoke, figuras carismáticas que têm bons motivos para serem quem são). A obra desse animador, com sua descostrução sobre as ideias tradicionais de gênero, tem que ser vista por toda criança ocidental.

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