Rio Grande do Norte, quarta-feira, 24 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 6 de outubro de 2014

Eleições: preconceito regional e o ódio aos pobres

postado por Alyson Freire

Nos dias pós-eleições, o destilar de preconceito regional e racismo de classe já nem constitui mais novidade.  Mais uma vez, o bom desempenho do PT nas eleições presidenciais, alavancado pelos expressivos resultados nas regiões Norte/Nordeste – Dilma obteve 50,52% e 59,58%, respectivamente -, trouxe à tona antigos rancores e injúrias contra essas regiões e os mais pobres em geral. A tese da responsabilização e culpabilização dessas regiões e camadas sociais pela vitória e manutenção do PT tornou-se uma constante desde pelo menos as eleições de 2006. Ela não se restringe ao esgoto das redes sociais, muito embora estas sejam as principais protagonistas de propagação das odiosas ofensas e preconceitos. Podemos observá-la, coberta com os devidos disfarces da objetividade jornalística e da constatação empírica, nas páginas dos articulistas nos principais jornais e revistas do país, como é o caso do artigo de Reinaldo Azevedo no qual chama o PT de “partidos de grotões”

tumblr_nd1mazRgyD1u0ebhqo1_500No fundo, não há grandes diferenças entre os ataques sórdidos e explícitos disfarçados de desabafos nas redes sociais e algumas ditas análises do mapa eleitoral de distribuição do voto, pois elas compartilham uma mesma motivação de desqualificação e sentimento de indignação contra a cidadania de nordestinos e pobres. O voto, no sufrágio universal, é um instrumento de nivelamento político dos socialmente desiguais. Por isso, os mais abastados, zelosos da distinção que atribuem a sua posição social, não suportam a ideia de que a cidadania daqueles, seu voto e suas preferenciais políticas, possua o mesmo valor da sua cidadania, isto é, de cidadãos escolarizados, “produtivos”, “pagadores de impostos” e bem posicionados na sociedade. No Brasil, ainda vige de maneira persistente um verdadeiro e profundo ódio à igualdade, produto das feições aristocráticas ainda existentes nas camadas dominantes e mais abastadas da sociedade brasileira.

Nesse sentido, o voto das regiões mais periféricas e das camadas sociais mais pobres é concebido tão somente como a expressão das mazelas socioeconômicas que as acometem e as tornam docilmente manipuláveis e sugestivas. Na definição do voto, não haveria a atuação de ideais, reflexividade, identificação com projetos, discernimento, todas essas disposições de autonomia pessoal extremamente valorizadas numa ordem social individualista, mas apenas o efeito bruto e tacanho do analfabetismo, da despolitização, da dependência estatal, do clientelismo, da miséria, do oportunismo. Enfim, tudo o que, na mentalidade classista dos que se desejam supercidadãos e reclamam privilégios por sua condição e autoimagem social, representa e significa o atraso, o arcaico, o subdesenvolvido e o parasitismo, velho estigma lançado, por diversas vias, sobre as regiões Norte/Nordeste.

Muito embora, tenhamos aqui a caução ideológica para legitimação e afirmação de antigos estigmas e preconceitos contra o Nordeste, os nordestinos e os mais pobres em geral, porém, no que diz respeito a esta polarização regional e de classe bastante visível na distribuição dos votos, estamos diante de um fenômeno novo, que se articula a uma conflito nuclear da sociedade brasileira, e cujas camadas de preconceito e infâmia somente embotam o seu real entendimento e alcance.

Trata-se de uma mudança recente nas clivagens do eleitorado brasileiro no tocante à identificação e adesão das classes sociais aos projetos políticos em disputa. A tese é do cientista político André Singer, segundo a qual, junto ao lulismo e seu empenho redistributivo, emergiu no Brasil das últimas décadas um novo realinhamento eleitoral cuja expressão ideológica não consiste numa polarização direita/esquerda, mas sim entre ricos/pobres e, por razões históricas e sociológicas de nossa formação social, com forte acento e repercussão regional.

Conforme as pesquisas sobre dados eleitorais de André Singer, a histórica tendência dos mais pobres pelo voto nos candidatos e projetos mais conservadores se rompeu – vale lembrar que, em 1989, Lula perdeu justamente entre os mais pobres e venceu Collor entre os mais escolarizados e na classe média. As dificuldades materiais, simbólicas e sociais que a pobreza impõe para a organização política dos mais pobres, tanto para defender seus interesses, fazendo valer suas vozes na vida pública, quanto para proteger-se dos efeitos de mudanças bruscas, explica o porque da identificação e aliança com os segmentos políticos mais conservadores ou com figuras políticas carismáticas que, do alto, possam realizar as mudanças ansiadas.

Nesse sentido, de acordo com a análise de Singer, os mais pobres, que ele chama de subproletariado, que sempre se manteve distante de Lula, encontrou o presidente operário, a partir do segundo mandato, a concretização de uma expectativa por um Estado que busca, com medidas redistributivas, incluir e melhorar as condições de vida e de acesso à recursos escassos dos mais pobres sem ameaçar de maneira radical, por outro lado, a ordem estabelecida – estabilidade econômica, juros baixos, inflação controlada, e estabilidade política. Os dados e resultados das últimas eleições comprovam o vigor da tese de Singer, assim como a ideia de que o realinhamento eleitoral prescinde agora de uma figura carismática de identificação.

É este realinhamento entre ricos/pobres e a formação de um bloco de poder em que os mais pobres, ainda que não de maneira autônoma e tumblr_nd1m46ZFO41u0ebhqo1_500protagonista, assumem um lugar e um poder de decisão nos rumos do país capaz de alçar e pautar seus problemas e expectativas ao plano principal das ações do Estado e da agenda das principais lideranças e forças políticas do país, o que incomoda e machuca duramente aqueles que, por tanto tempo, se acostumaram a conceber somente a si e os seus como cidadãos – como sujeitos políticos e de direitos -, relegando todos os demais à  condição de resto, de excluído, de esquecido, de massa e subcidadão. Assim, é sob esse novo contexto de polarização que novas e antigas tensões afloram e se alimentam, trazendo à luz todas as cisões, desigualdades, as formas de desrespeito e inferiorização naturalizadas e os frágeis consensos normativos sobre o valor da pessoa humana que caracterizam a sociedade brasileira.

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Abaixo o link para um coletânea odiosa de preconceitos, ignorância e racismos variados, expelida nas redes sociais contra o Nordeste e os nordestinos:

http://essesnordestinos.tumblr.com/

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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