Rio Grande do Norte, terça-feira, 16 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 25 de novembro de 2014

A Nova Domesticação das Mãos na Era Digital

postado por Carlos Freitas

“Da necessidade, se faz a virtude”, um mantra quase sempre citado pelo sociólogo francês, Pierre Bourdieu, a respeito da maneira como procuramos com freqüência articular soluções “reais” ou “ilusórias” (mágicas) para melhor lidar com as nossas “urgências” do presente. Jogando um pouco de Wright  Mills na frase bourdiesiana, diria que também da necessidade, se pode fazer a “imaginação sociológica”. Às vezes, nos recantos mais triviais do cotidiano, encontramos os desdobramentos microssociológicos de mudanças macrossociológicas há tempos em curso na sociedade.

Uma experiência pessoal recente me fez pensar sobre um assunto ainda pouco discutido na esfera pública. No leque de mudanças tecnológicas atualmente em curso, há um fenômeno que merece maior atenção sociológica. Refiro-me ao tipo de relação que estabelecemos com a escrita. Mesmo completamente imersos em uma nova configuração dos meios de comunicação, ainda pensamos e imaginamos a cultura de escrita com as gramáticas cognitivas do “artífice” que faz um uso corporal quase estético de suas mãos no desenho das letras em uma folha de papel.

Contudo, há uma diferença sutil, mas significativa entre a escrita manual e a escrita digital. São técnicas de escrita que solicitam usos diferentes de nossas mãos. E mais importante, são tecnologias distintas que estabelecem relações variáveis com o tempo de produção textual.

Como mencionei acima, as duas técnicas de uso da escrita são radicalmente distintas, pois são maneiras diferentes de escrever com as mãos. Ao invés de segurar e desenhar, agora “teclamos” e movimentamos os dedos. São diferentes técnicas corporais com efeitos cognitivos também diferenciados. Sennett, sociólogo americano que escreve seus textos como partituras musicais, já havia assinalado as conseqüências subjetivas e objetivas nas formas de uso de nossas mãos. Suas belas descrições das técnicas manuais quase sempre referem-se aos exemplos virtuosos de mãos bem treinadas no toque de cordas de instrumentos musicais.  Sem o brilhantismo estético de Sennett, gostaria de acrescentar apenas a diferença com o ritmo temporal provocado pela escrita.

Em tempos de “cibercultura”, pessoalmente, fiquei dependente demais da escrita digital, esquecendo a importância dos exercícios artesanais da escrita manual demorada e prolongada. Não que tenha diminuído minha cultura de escrita. Ao contrário, creio que atualmente escrevo diariamente com muito mais frequência do que no passado. Mas a verdade é que a minha, a sua, a nossa cultura de escrita não é mais a mesma de nossos pais. Não devemos confundir o tempo da “escrita manual” (uso exclusivo das mãos) com o tempo da “escrita digital” (uso das mãos nas teclas de computador). São relações técnicas distintas com o tempo de escrita.

Com efeito, há uma descontinuidade entre as práticas diárias no cotidiano e os dispositivos institucionais de seleção meritocrática. Enquanto no dia a dia, fazemos uso constante da escrita digital, nos processos de seleção institucional ainda é solicitada a mobilização de competências associadas ao uso da escrita manual.  Esquecer esses detalhes pode custar a qualidade do conteúdo de um texto cronometrado. Compreendo melhor o sofrimento daqueles jovens talentosos que participaram de exames seletivos que exigem grande esforço físico-motor da escrita manual, a exemplo das redações do ENEM. Uma acumulação de talentos frustrados diante da falta de familiaridade com a escrita manual (de modo algum, com a cultura de escrita).

Isso nos faz recordar os estudos etnológicos de Jack Goody acerca da evolução nos meios de comunicação e seus efeitos culturais nas sociedades humanas. Goody – um antropólogo raramente lembrado (talvez por não ter cultivado preconceitos com o uso heurístico da abordagem evolucionista) – já havia assinalado diferenças na dinâmica dos processos cognitivos entre indivíduos de sociedades com cultura escrita e os indivíduos em sociedade com ausência de escrita. No presente tecnológico, convém “escrever” também sobre a experiência temporal e cognitiva produzida pela escrita digital-informatizada. E sobre as instituições, também se faz necessário que as mesmas examinem se estão devidamente conectadas com as novas paisagens técnicas da cultura escrita.

Enfim, estou destreinado com as velhas técnicas corporais do uso da mão que escreve…

Obs: Este texto foi escrito digitalmente em 26 min. Quanto tempo levaria se fosse escrito à lápis?

Carlos Freitas

Sociólogo e Professor Doutor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN. Interesse por temas de Cultura Política e Sociedade. Contato profissional: calfreitas@hotmail.com

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