Rio Grande do Norte, quarta-feira, 24 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 26 de março de 2015

O “lado negro” dos grandes ícones históricos

postado por David Rêgo

Está circulando na internet um vídeo bastante curioso. Um rapaz chamado Fernando Holiday fez um vídeo provocador (clique aqui para ver). O vídeo, que tem por título “Por que somos um país racista?”, critica alguns setores do movimento negro, suas políticas e ícones. Em pouco tempo atingiu quase 100mil visualizações no youtube. Faz uma crítica pertinente, ao lembrar que Zumbi dos Palmares mantinha escravos, era autoritário, entre outras qualidades nada desejáveis em um “herói”. Isto faz pensar. Nos leva a perguntar: será que os nossos grandes heróis eram mesmo “boas pessoas”? Homens éticos e todos eles cheios de virtudes e carentes de vícios? Holiday é ligado ao Movimento Brasil Livre, uma das entidades que defendem o liberalismo econômico como política de governo.

Jonh Locke é um grande ícone do pensamento liberal. Ele e Zumbi dos Palmares viveram na mesma época. Locke nasce em 1632 e morre em 1704. Zumbi nasce em 1655 e morre em 1695, quando seu Quilombo cai frente as tropas de Domingos Jorge Velho. Vivem em um mesmo período histórico, mas em locais completamente diferentes. Entretanto possuem algo em comum. Um estreito vínculo com a escravidão em suas histórias de vida.

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Busto de John Locke. Museum of Art, Universidade de Wisconsin-Madison, USA.

Locke,  tido como o pai do liberalismo econômico, defensor da vida, da liberdade e da propriedade privada é muito admirado e citado. Deixam apenas escapar que justificava a escravidão em seus escritos. Em seu livro “Segundo tratado sobre o governo”, no Capítulo IV intitulado “Da escravidão” o filósofo inglês afirma que a escravidão é válida em uma condição: quando se vence uma guerra e o derrotado opta por servir ao invés de morrer. Segundo ele, você pode executar um prisioneiro de guerra. Seria justo matar alguém que foi capturado (em dias de hoje tal prática é considerada um “crime de guerra”). Então, ambos acabam fazendo um “contrato” em que um aceita servir em troca da manutenção da vida. Citando o autor:

“esta é a perfeita condição da escravidão, que nada mais é que o estado de guerra continuado entre um conquistador legítimo e seu prisioneiro”.

Locke não só tentava justificar a escravidão, investia nela. Foi acionista da Royal African Company. Empresa especializada no tráfico negreiro que entre os anos de 1672 a 1689 transportou aproximadamente 100mil escravos. Os escravos eram marcados à ferro quente com as iniciais da empresa: “RAC”. Aliás, o inglês gostou tanto da ideia de “transportar gente” que associou-se também a outra empresa que trabalhava com tráfico de escravos, a “Bahama Adventurers”.

busto

Busto de Zumbi dos Palmares em Brasília

Zumbi, por sua vez é tido como um grande ícone da consciência negra e da resistência. Deixavam antes escapar que o grande líder do maior quilombo que se teve notícias no Brasil era alguém autoritário, perseguidor e que mantinha para si uma série de escravos.  Zumbi sobe ao poder após tramar o assassinato de Ganga Zumba antigo líder dos Palmares. Este último é filho de uma princesa africana, Aqualtune, filha do rei do Congo. Foi capturada no Ano de 1665 quando seu reino foi derrotado por um rival. Seu pai foi morto e ela vendida como escrava para os portugueses.
Observamos que nos escritos  muitos povos africanos pareciam manter uma relação parecida com a de John Locke com a escravidão: “ela é válida, em casos de guerra”. O reino que derrotou o pai de Aqualtune a vendeu como escrava, parecia ser uma prática válida para sua cultura. Zumbi vive e cresce em um quilombo que tem como líderes pessoas que descendem de famílias reais africanas, carregam consigo uma série de práticas e valores específicos de uma cultura. Ele é um negro livre, faz parte da família real e nunca foi escravizado. Os escravos de Zumbi, ao que conta a historiografia, eram escravos de guerra. O líder dos Palmares fazia de escravos os desertores, fugitivos, espiões etc. Lembremos, Zumbi vivia em um Quilombo, não na ilha da fantasia. A sua situação era de guerra constante e a escravidão por ele praticada era a mesma escravidão que Locke justificava.

Critica-se Zumbi por ter escravos e afirma-se que por isto ele não pode ser o ícone de uma luta.  Mas nada falam de Locke, ícone do Liberalismo que tenta em seu livro justificar a escravidão e que tinha como fonte de lucros o tráfico negreiro. Seriam alguns tipos de escravidão menos escravidão do que outros (?!). Já que não podemos admirar Zumbi pela manutenção da escravidão, não podemos admirar Locke, já que ele concordava com a prática do líder negro. Lembremos, de acordo com Locke a escravidão por guerra é válida. Os escravos feitos por Zumbi eram prisioneiros de guerra.  Locke dava sustentação filosófica ao que Zumbi praticava, mesmo sem se conhecerem. Tivesse Zumbi acesso a Londres e aos escritos de Locke, poderia utilizá-los para justificar suas práticas escravagistas.

Não podemos ter Zumbi como herói, era um escravagista, assassino e autoritário. Neste mesmo contexto, devemos riscar Locke da lista de intelectuais do liberalismo, já que era um mercador de escravos. Trata-se de um tipo de pensamento um tanto quanto ingênuo. Uma infantilidade. Por mais progressista que seja, cada indivíduo está preso ao seu tempo, aos seus costumes e valores. Por mais crítico que seja, reproduzirá de forma cristalizada/invisível uma série de violências, que apenas em tempos posteriores serão visibilizadas como tal.

Jonh Locke viu o terror da escravidão, a descreveu em seus livros. Não podemos medir até que ponto o envolvimento dele com esta prática o auxiliou a fazer escritos contra ela própria. É preciso conhecer bem para fazer críticas contundentes. Locke conhecia muito bem como se dava o tráfico negreiro e justamente por isto pode revelar ao mundo o terror desta prática em seus livros. O segundo tratado sobre o governo é publicado em 1681, época em que o inglês já possuía vasta experiência com o tráfico negreiro. O John Locke que nós queremos lembrar é aquele que falava pela vida e pela liberdade. Não um financiador  de navios da morte.

O mesmo vale para Zumbi. Sentiu o terror da escravidão, lutava para não ser escravo. Os quilombos eram forças políticas e como todas elas, existem dissidências. O antigo rei (Ganga Zumba) foi tido como covarde, por guiar seu povo para o retorno a escravidão ao fazer pactos com a coroa portuguesa. Zumbi e seu grupo não aceitaram e preferiram lutar. Lutar até que caísse o último soldado. O Zumbi que queremos lembrar é a aquele que lutou até o fim dos dias pela liberdade de seu povo. E não o líder autoritário que não conseguiu romper com a prática escravagista de sua cultura.

Elogiamos as virtudes de ícones históricos, já que o ensino da história tem como função, também, gerar um cidadão ético. Isso não implica dizer que os grandes ícones históricos eram puros, vestiam-se de branco e falavam e forma de verso. Só uma mente muito ingênua para acreditar que os ícones históricos são igual aos “heróis dos quadrinhos”. Newton era um arrogante e perseguidor. Santo Agostinho abandonou a mulher e filho. Fulano era alcoólatra. Sicrano era mulherengo etc. etc. etc.; a lista ficaria sem fim, e, se assim o fizéssemos, talvez, só sobrasse Jesus de santo no mundo. Talvez.

David Rêgo

Sociólogo, antropólogo e cientista político (UFRN). Professor do ensino médio e superior. Áreas de interesse: Artes marciais, política, movimentos sociais, quadrinhos e tecnologia.

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