Rio Grande do Norte, quinta-feira, 25 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 1 de abril de 2015

Redução da maioridade penal como vingança social, ou, porque ela não funciona

postado por Alyson Freire

A sociedade brasileira se ver às voltas novamente com a discussão sobre a redução da maioridade penal. Ao contrário de outras ocasiões, o clamor punitivo e por “segurança” que inspira a proposta de redução da maioridade penal não foi bradado, como de costume, por conta de algum episódio trágico e brutal de assassinato envolvendo menores e indivíduos de classes mais abastadas. Dessa vez, coube a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara o protagonismo com a aprovação para discussão parlamentar da PEC 171/93, a qual propõe a reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos.

Um dos argumentos em que o parecer favorável à redução da maioridade penal tenta se sustentar reside em seu suposto efeito para combater a incidência de crimes cometidos por adolescentes. A esse respeito, o deputado Marcos Rogério (PDT-RO) afirmou que redução da maioridade penal “tem como objetivo evitar que jovens cometam crimes na certeza da impunidade”. Nesse sentido, convém pensar; será que a redução da maioridade penal funcionaria para diminuir o índice de crimes e de violência? Ou ela agravaria problemas já existentes sem se quer tocar na raiz do problema? É isso que tem que ser seriamente avaliado e discutido. Não se trata, simplesmente, de julgar se a redução da maioridade penal é justa ou não, ou se os jovens, que já podem votar, trabalhar e constituir família devem responder também pela infrações que cometem como os outros adultos, mas sim se tal proposta funcionaria efetivamente em nossa sociedade. A meu ver, ela agravaria problemas já existentes e não atacaria as causas concretas da criminalidade violenta que se deseja combater e atenuar.

Antes de expor minha argumentação, convém ressaltar que a insistência e o clamor por mais rigor punitivo e penal se inserem num insatisfação social legítima, a qual atesta, ao menos, um duplo fracasso da política. Primeiro, a própria ineficiência do poder público na prevenção e combate da violência, e, segundo, a carência de projetos progressistas concretos em matéria de segurança pública que pautem firmemente o debate – “O Pacto pela Vida” em Pernambuco é uma louvável exceção que deveria ter muito mais visibilidade e atenção no debate nacional. Este duplo fracasso que alimenta às aspirações de “Estado Penal”, isto é, de um Estado com prisão perpétua, pena de morte, redução da maioridade e ações mais repressivas não pode ser esbatido apelando-se simplesmente para o conservadorismo, o autoritarismo, o revanchismo e ignorância das classes médias.

A efetividade da redução da maioridade penal produziria como consequência prática imediata a alimentação de uma já atuante hiperinflação carcerária, a qual vem alçando o Brasil à posição de um dos países com a maior população carcerária do mundo. Hiperinflacionar o encarceramento nas condições atuais das prisões do país significa, por um lado, atravancar e retardar ainda mais o urgente processo de transformação do sistema prisional em uma instituição de ressocialização de fato e, por outro, agravar os problemas criminais já existentes nos presídios brasileiros; alto índice de reincidência (70 %, segundo o Conselho Nacional de Justiça), atuação do crime organizado, rebeliões, organização de ataques contra a população, recrutamento de novos criminosos, etc.. Em outras palavras, significa alimentar um sistema prisional degradado e degradador que encontra-se, sob todos os pontos de vistas, falido e fracassado em suas finalidades de segurança, correção e reintegração.

Não é o medo de ser punido e de ir preso que fará com que adolescentes, acostumados e violentados com todo os tipos de ameaças, inseguranças, medos e desesperanças, decidam de uma hora para outra não entrar ou sair da “vida criminosa”. Ora, se observamos as últimas taxas de homicídio dos Mapas da Violência constataremos que esses jovens são as principais vítimas de assassinato, numa macabra média diária de 82 jovens mortos por dia num total de 30 mil por ano! Mais do que sobre a redução da maioridade penal, é sobre esse extermínio da juventude, cujas vítimas são, em sua larga maioria, jovens negros e moradores de periferia, que deveríamos estar debatendo. Isto significa que muitos dos adolescentes infratores já assumiram o risco de perderem suas vidas de forma violenta e abrupta, pois mergulhados que estão num contexto de sociabilidade violenta, a prisão, assim como a humilhação social, a violência policial e o assassinato de amigos e parentes, se torna rotina e um lugar familiar do qual já nem se sente o peso e a dor no corpo e na consciência. Se nem a morte prematura e violenta assusta, não será a prisão, com todas as suas mazelas, que fará isso.

O erro do raciocínio que acredita que a redução da maioridade penal irá inibir os jovens de cometerem crimes consiste na generalização do images (11)cálculo sobre a impunidade como se este fosse uma variável significativa para todos os tipos de infratores e criminosos. Ora, quem toma as chances de ser punido como variável significativa no cálculo da ação criminosa são aqueles indivíduos que possuem, ou melhor, adquiriram um forte senso prospectivo orientado para o futuro em razão de sua educação ou prática criminosa, tais como: crimes de colarinho branco, corrupção, agiotas, estelionatários, e, em algum nível, sequestradores mais especializados etc.. Em outras palavras, criminosos que se preocupam e planejam o futuro, ponderando oportunidades, benefícios e riscos para maximizar o êxito e os resultados esperados de sua ação. Este não é o caso de adolescentes assaltantes, homicidas, ou envolvidos com o tráfico de drogas, oriundos, em sua maioria, de contextos urbanos e familiares profundamente desagregados e anômicos socialmente. Estes adolescentes enveredam pelos caminhos perversos do crime em busca de respeito, status e reconhecimento no grupo, que são bens simbólicos inscritos num horizonte presente, os quais eles não conseguem alcançar nem veem como expectativa alcançar por meio de outras esferas sociais legítimas, tais como a educação, o trabalho, a família. Desse modo, para encontrar a sensação de “estima e respeito social” resta a “vida do crime” e, nesses contextos, a “sedutora” sociabilidade criminosa.

O discurso do recrudescimento penal somado à indiferença social das classes médias silenciam, escamoteiam e restringem um conjunto de outras questões fundamentais na discussão sobre violência e seu combate: a proteção e inclusão integral de crianças e adolescentes pobres no Brasil, a reestruturação das condições do sistema carcerário, a não-aplicação plena do ECA, a ampliação e maior eficácia nas políticas públicas direcionadas para a juventude nas temáticas de lazer, inclusão social, preparação profissional e reintegração social de egressos, projetos de prevenção da violência nas escolas e regiões mais violentas, mapeamento preciso das regiões com maior incidência de crimes violentos, etc..

Sem discutir aprofundadamente esses temas, deixamos de compreender o essencial, qual seja; as condições de possibilidade e de reprodução do comportamento infrator que, no caso do crime violento regular, está ligado aos efeitos perversos da desigualdade social. Em termos unicamente de segurança pública, o efeito perverso e nefasto do discurso de redução da maioridade penal é que ele apaga e minimiza fatores essenciais na reprodução da dinâmica do crime e da violência. É um discurso que não gera nem estimula reflexividade, pesquisa, questionamento. É paliativo e imediatista. Simplesmente não se abre para a complexidade do fenômeno da “violência urbana”.

Nessas condições precárias de debate e informação, a proposta de redução da maioridade penal acaba por se reduzir a saciar o desejo social de vingança e de controle social através da punição contra os mais pobres e desvalidos sociais, gerando significativos lucros políticos para os oportunistas profissionais. Porém, nem a vingança nem a punição atacam as raízes do problema da violência e da criminalidade. Pelo contrário, acirram o sentimento de que o Estado é uma instituição hostil aos mais pobres, sobretudo contra os jovens, intensificando, assim, o caldo sociopsicológico de sentimentos e emoções agressivas de revolta, ressentimento e desesperança. Temos, então, o que o sociólogo Loic Wacquant chamou, em relação aos Estados Unidos, de “penalização da miséria”, fazendo do Estado uma verdadeiro instituição penal e punitiva que funciona como mais um mecanismo de pressão e marginalização das camadas sociais mais pobres.

Em países desiguais e de ampla subcidadania como o Brasil, reduzir a maioridade penal significa uma declaração de guerra contra as parcelas da sociedade mais vulneráveis e violentadas pelo Estado e pela desigualdade. Para combater a violência e o crime violento, podemos ser mais inteligentes do que propor maior punição para inserir mais cedo jovens num sistema prisional ineficiente, falido, desumano e que, ironicamente, acaba por produzir mais crimes e por qualificar criminosos que estão dentro e fora das prisões.

O apetite insaciável por uma legislação mais dura e por vingança social não levam a nenhum futuro promissor e tão pouco a um presente mais seguro. A redução da maioridade penal não é a resposta mais adequada para nossa realidade social, a qual condena milhões de jovens ao árduo desafio de tentar superar a subcidadania, os estigmas sociais e raciais, a desagregação familiar, a violência, a pobreza, a humilhação social cotidiana sem sucumbir as “vantagens e seduções” imediatas do crime como projeto de vida (e morte). Para enfrentar com ideias e propostas a altura da complexidade do problema da violência em sociedades desiguais como a brasileira, é preciso, sim, debate qualificado e participativo, conhecimento técnico, pesquisa, dados comparativos e reflexividade para formular políticas públicas amplas e integradas.

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– Para maiores detalhes sobre a política pública “Pacto pela Vida”, cujo um dos formuladores foi o sociólogo e professor da UFPE  José Luiz Ratton, acesse: http://igarape.org.br/wp-content/uploads/2014/07/artigo-8-p2.pdf

– Mapa da Violência 2014: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf

 

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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