Rio Grande do Norte, sábado, 20 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 8 de junho de 2015

Em defesa da Blasfêmia

postado por David Rêgo

1 – As micro-violências invisibilizadas 

10494525_912259012149400_5882358929083140901_nQualquer grupo não cristão sabe a quantidade de “micro-violências” que são obrigados a ouvir calados no dia-a-dia. Todo “santo dia” a mesma história: chuta que é macumba, esse não tem Deus no coração, você tem que acreditar em alguma coisa, nós conhecemos a verdade, só é ateu até o avião começar a cair, entre uma série de outras dicas e conselhos muito bem intencionados, mas que irritam qualquer alma não cristã. É a chamada colonização do pensamento. A maioria (cristã) pressiona qualquer ovelha desgarrada a juntar-se ao rebanho. E quando não obtém o resultado esperado, as próprias ovelhas chamam os lobos para perseguir as que foram para fora do grupo. Sempre com ameaças veladas (ou não) como “não vou mais falar, você sabe o que o aguarda se continuar assim (o inferno).

2 – O referencial ideológico para disseminação do ódio

A comunidade LGBT é a mais atingida pelo discurso dos religiosos fervorosos. Nem os ateus sofrem tanto. No youtube é possível ver alguns pastores distorcendo as escrituras bíblicas com o objetivo de disseminar o ódio contra homossexuais.  A pastora Yonara Santo é um exemplo cômico do que falamos. Em seu vídeo, amplamente divulgado pela internet, que fala a respeito do “Vale dos homossexuais”, a pastora afirma, ao citar o “Levítico 18″ que ouviu de um anjo os seguintes dizeres: maldito é o homem que se deitar com outro homem e ele é digno de morte por praticar tal coisa, responsável será pela sua morte por fazer o que é abominável diante de Deus”. 1h 20min e 40 segundos. É o momento do vídeo em que a pastora afirma ter ouvido do anjo tais afirmações. O vídeo está disponível mais abaixo.
Ocorre que houve algum problema na brincadeira de telefone sem fio entre Deus, a pastora, o anjo e o pessoal que escreveu a bíblia. Deus deu um só recado. Mas na bíblia anotaram de um jeito, enquanto o anjo que conversou com a pastora disse de outro ou então ela ouviu errado. Resta saber quem traduz melhor a fala de Jeová, se a bíblia ou a religiosa. Ao ir até a bíblia, ver aquilo que diz o “Levítico 18” encontramos: “Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é”.  Deixemos claro que a pastora reescreve a bíblia ao seu bel prazer, adicionando em suas falas passagens que não aparecem nas escrituras que chegaram aos dias atuais. É preciso deixar em destaque a passagem bíblica inventada pela pastora:

maldito é o homem que se deitar com outro homem e ele é digno de morte por praticar tal coisa

Na atualidade a religião é principal arma contra o comportamento sexual dito desviante. A ciência também já ocupou este papel, mas o abandonou desde a década de 70 quando a homossexualidade saiu do hall das doenças psíquicas ( Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a palavra da lista de transtornos mentais ou emocionais). Em dias atuais, apenas a religião é usada como referência para a reprodução da crítica aos homossexuais, travestis, transgêneros ou seja qual for o tipo de comportamento “desviante”. Alguns podem argumentar que os Neonazistas também perseguem a comunidade LGBT. Sem dúvida alguma, mas é preciso lembrar o lema estampado nas camisas e slogans Neonazis: “Deus, pátria e família”. A sustentação ideológica é a mesma dos religiosos fervorosos.

3 – A resposta dos violentados

“Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor” (Malcolm X)

TRANSNa passeata Gay de 2015, em São Paulo, grupos artísticos tiveram a ideia de criticar o comportamento de alguns religiosos. As imagens viralizaram e podem ser vistas por toda internet. O messias foi representado por um corpo femino na cruz (com a sigla LGBT no lugar de INRI, ou seja, ou uma lésbica ou uma trans ocupavam o lugar que outrora um homem heterossexual ocupou). A imagem causou espanto e serve para reflexão.
Devemos lembrar que há não muito tempo, quando estreou nos cinemas “O auto da Compadecida” muitas pessoas disseram ser uma afronta representar Jesus como um negro. Na época, tínhamos uma sociedade mais racista do que a de hoje. Era uma afronta um Jesus negro. Para o azar de alguns religiosos, uma série de pesquisas e reconstruções feitas a partir da análise do santo sudário (supostamente o manto que envolveu Cristo após sua morte) demonstraram que provavelmente Jesus era mais escurinho. Em dias de hoje poucos importam-se com a representação de um Jesus negro.

Jesus Negro já foi considerado uma ofensa

Jesus Negro já foi considerado uma ofensa.

É neste sentido que não deveríamos ver com grande espanto a representação do “messias” como gay, trans, lésbica ou seja o que for. A ideia da performance é demonstrar que ainda em dias de hoje existem aqueles que são crucificados. Indo mais além, se pararmos para refletir, Jesus foi morto pela maioria. Sua morte foi desejada. Era considerado um rebelde, uma ovelha desgarrada e alguém que era uma afronta à moral estabelecida.  Ora, se o messias voltar no mesmo contexto, provavelmente pediríamos outra vez a sua crucificação pelas mesmas razões que a sociedade romana o fez há mais de 2 mil anos. O messias provavelmente seria morto pelos cristãos por considerar sua conduta errada. Neste sentido, precisamos abrir espaço para a “blasfêmia”, ou corremos o risco de crucificar o messias mais uma vez e só percebermos séculos depois que matamos outra vez o filho de Deus.

4 – O RN e a relação entre anus e religião.

1491761_10152078490888270_932211765_n1Além da “Messias feminina” a passeata contou com outras performances que geraram pavor em muitos. Durante a passeata um grupo optou por algo de maior impacto. O resultado final foi um “crucifixo analisado”(!). Não é a primeira vez que alguém tem a ideia de fazer críticas “pesadas” a religião cristã. No ano de 2010 o artista Pedro Vieira da Costa Filho (Pedrx – imagem ao lado) recebeu prêmio da Fundação Cultural Capitania das Artes após uma apresentação artística em que retira um rosário do anus. De acordo com o artista, a ideia da performance era a de “lutar pela descolonização do corpo e para expurgar a interdição católica sobre o prazer anal”. A entrevista completa pode ser encontrada na Tribuna do Norte que fez mais de uma matéria sobre o caso. O Site Substantivo Plural também abordou o assunto e entrevistou o artista. Abaixo links das reportagens:

Matérias na Tribuna: 1 – “Artista que retirou rosário do anus vai receber premiação da FUNCART”. 2 –  “Polêmica no Salão”.

Matéria no Substantivo Plural: “Em Salão de Artes, performer tira terço do ânus

5 – A crítica ao sagrado e a democracia

É preciso deixar claro que a crítica ao sagrado é uma tradição democrática. No ocidente, foi muito difundida a partir dos Iluministas. Jean Meslier, sacerdote católico francês, escreveu que só haveria liberdade no dia que o último rei fosse enforcado nas tripas do último padre. A crítica ao uso político da religião não é um privilégio dos “desviados sexualmente”.  Alguns heterossexuais na França tratam o uso político da religião de forma muito mais dura como podemos ver nas imagens abaixo.

Mais do que nunca, é preciso abrir o debate sobre os usos que alguns políticos costumam fazer da religião. Utilizando-se de preconceitos para legitimar suas práticas. Transformando fieis em cabides eleitorais. Fazendo da fé em um negócio lucrativo.

 

David Rêgo

Sociólogo, antropólogo e cientista político (UFRN). Professor do ensino médio e superior. Áreas de interesse: Artes marciais, política, movimentos sociais, quadrinhos e tecnologia.

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