Rio Grande do Norte, quinta-feira, 18 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 2 de julho de 2015

A quem interessa a redução da maioridade penal?

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Com uma estratégia já esperada, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), após a tímida derrota de ontem, recolocou a temática da redução da maioridade penal em votação… O texto que se segue é um lamento, mas também um grito de resistência que se une ao de tantas companheiras e companheiros, com que sei que partilho da dor e do sentimento de retrocesso que essa decisão aponta. Ao contrário do “avanço” percebido por outros tantos, que se veem contemplados na manchete do Jornal Folha de São Paulo que fala em avanço ao tratar do mesmo assunto

No dia 07 de Junho de 2013 fui convidado pelo Instituto Raízes da África (Maceó-AL ) para dar uma palestra com o mesmo tema que serve de título a esse texto. Dentre as variáveis que me interessam dentro do tema, destaco as questões concernentes as desigualdades de classe, de raça e etnicidade, as quais  podem ser pensadas separadamente, já que o racismo, por exemplo, independe de desigualdades socioeconômicas, mas não quando tratamos de temas como maioridade penal. Dito isto, pretendo apresentar algumas questões e posicionamentos:

  1. Por que este tema volta quase que periodicamente a ganhar visibilidade?

Presenciamos recentemente assassinatos que podemos julgar como “bárbaros” – como se algum tipo de assassinato não o fosse – onde pessoas prestes a completar 18 anos assassinaram pessoas, e, supostamente não arcariam com qualquer tipo de punição ou que a punição prescrita pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao defenderem a redução da maioridade a partir desse argumento, está se ignorando o processo internacional e nacional que culminou com a elaboração e promulgação do ECA em 1990, apenas dois anos após a Constituição de 1988.

Processo este bastante complexo e denso, que dentre outras questões, advinha de uma crítica ao Código do Menor (o primeiro e o segundo) que apesar de diferentes, convergiam, grosso modo, em uma questão: o termo “menor” era usado especialmente pelos operadores do direito enquanto sinônimo de criança pobre, que, por sua vez, aparecia quase como sinônimo de delinquente em potencial. Não custa lembrar uma antiga notícia jornalística que trazia em sua chamada a frase “Menor mata criança”, que se tornou emblemática dessa questão.

Neste sentido, creio que seja importante diferenciarmos as categorias “criança e adolescente sob medida de proteção/protetiva” e “adolescente em conflito com a lei”: o primeiro termo diz respeito a situações de abandono, maus-tratos, trabalho infantil, etc. “Em conflito com a lei” diz respeito a adolescentes – pessoas entre 12 e 18 anos incompletas – que tenham cometido atos ilícitos. Estes vão a juízo, podendo, inclusive ficar em situação de total reclusão. Creio que alguns dados apresentados pelo CNJ – Conselho nacional de Justiça sejam importantes aqui:

  1. a) Do total de adolescentes em conflito com a lei em 2011 no Brasil, 8,4% cometeram homicídios. A maioria dos delitos é roubo, seguido por tráfico. Quase meta-de do total de adolescentes infratores realizaram o primeiro ato infracional entre os 15 e os 17 anos, conforme uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a maioria abandonou a escola (ou foi abandonado por ela) aos 14 anos, entre a quinta e a sexta séries. E quase 90% não completou o ensino fundamental”.
  2. b) Como já destaquei, o ECA prevê a responsabilização, sim! Inclusive com privação de liberdade, algo tremendo nessa faixa etária. Mas como o Poder Público vem lidando com a aplicação da lei? Numa pesquisa realizada pelo CNJ, apenas em 5% de quase 15 mil processos de adolescentes infratores havia informações sobre o Plano Individual de Atendimento (PIA), que permitiria que a medida socioeducativa funcionasse como possibilidade de mudança e desenvolvimento. Entretanto, o que se vê é que as unidades de internação já reproduzem em si a lógica das cadeias de adultos.
  3. c) O ECA propõe punição, mas de forma diferenciada, já que ao construirmos as diferenças entre adolescentes e adultos – algo do começo do século XX – precisamos levar essa diferenciação a cabo, inclusive em todas as atuações do Estado.
  4. d) O número de crimes contra a pessoa cometidos por adolescentes diminuiu – e não
    aumentou, como alguns querem fazer parecer. Segundo dados da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, entre 2002 e 2011 os casos de homicídio apre-sentaram uma redução de 14,9% para 8,4%; os de latrocínio (roubo seguido de morte), de 5,5% para 1,9%; e os de estupro, de 3,3% para 1%. Vale a pena também dar a dimensão real do problema: da população total dos adolescentes brasileiros, apenas 0,09% cumprem medidas socioeducativa como infratores.A maio-ria deles cometeram crimes contra o patrimônio.maioridade-penal

O que  presenciamos é uma guerra de desinformação a respeito do assunto, que prefere culpabilizar os sujeitos isoladamente sem problematizar o pano de fundo que está por trás de algumas questões. Além disso, me parece que as campanhas em prol da redução da maioridade penal surgem sempre em momentos-limite, no qual alguém, em geral, representantes da classe média e/ou média alta do Brasil são assassinados. A referida guerra parece enxergar no ECA um inimigo, que garante a impunidade dos adolescentes. O que passa bem longe do que a legislação propõe. Além disso, é minimamente curioso como defendemos, de acordo com as conveniências, que um Estado, reconhecidamente falido, em muitas das ações que garantiriam o exercício dos direitos e deveres do cidadão, é o mesmo ao qual uma parcela da população recorre para resolver problemas de violência como os que suscitam esse debate.

  1.    Que consequências, arriscando um palpite, podem decorrer se centrarmos todo o problema da violência entre jovens e adolescentes na redução da maioridade penal?

Ao defenderem a redução da maioridade para 16 anos muitos tomam como parâmetro o fato de que é nessa idade que: pode-se votar; casar; poder emancipar-se, para dar alguns exemplos.  O que não se explica nesses momentos é o porquê de não problematizarem a redução etária para se tirar carteiras de motoristas. Bem, apesar da relevância inegável dos primeiros direitos aqui apresentados, estes não trazem em si o potencial de dolo – direto – contra humanos, ao contrário do que se dá com quem dirige um veículo automotivo. Tal questão perpassa toda a discussão acerca da maturidade, consciência e responsabilidade.

Acredito que a maioria de nós concordaria com o fato de que essas são características muito subjetivas, relativas, etc. Entretanto, ao construirmos um Estado-Nação faz-se necessário a construção de parâmetros mais gerais, inclusive para que o Direito possa ser operado. Um exemplo disso são as divisões etárias. Com isto não quero afirmar que todo adolescente não tenha plena noção do dolo que existe em determinadas ações, ou que toda pessoa maior de idade tenha clareza deste. No entanto, ao construirmos estas divisões, diferenças, que compõem as nossas relações diárias, o Estado precisa de parâmetros diferenciadores, inclusive nos tipos de punição. É em prol disso que o ECA se torna peça fundamental nesta discussão. Dessa forma, ainda sobre a consciência do dolo, fazem-se necessários tratamentos diferenciados.maioridade-penal-seletiva-simch

Além dessas questões cabe perguntarmo-nos se o foco das questões sobre as violências entre jovens e adolescentes deve realmente estar na redução da maioridade penal. Se hoje sabemos que traficantes, por exemplo, fazem uso de crianças e adolescentes, baseados também na diferença de punição, se reduzirmos a maioridade para 16 anos, não começaremos a ver um número maior de pessoas de 15 servindo aos mesmos propósitos? Como bem destacou o desembargador do Tribunal de justiça de São Paulo, Antonio Carlos Malheiros “Os projetos falam em redução para 16 anos. Usa-se o jovem de 15 anos para cometer o crime com isso. Então vamos reduzir para 14? Vai ter outro menino com 13 anos, também trabalhando com o traficante, sendo aviãozinho, e até sendo gatilho do traficante, sendo soldado. Então, vamos reduzir para 12? E assim vamos indo até chegar à maternidade dos pobres, e vamos começar a apreender os nossos bebês. Não é por aí”.

Alguns vão argumentar que o principal motivo para o Governo não aprovar o projeto proposta seja porque os presídios do Estado não dão conta nem do atual público adulto, haja vista de uma forte ampliação deste por meio da mudança nas fronteiras etárias. Este argumento nos abre a possibilidade de fazer outra pergunta: Reduzir a maioridade não é também assumir que o Estado – seus agentes – não tem condições ou interesse em melhorar as condições de vida material e simbolicamente das crianças e adolescentes do país? Estamos jogando para o sistema carcerário brasileiro a possibilidade dele solucionar problemas? O mesmo serviço público que muitos frequentemente de sucateado e sem jeito, é o que usam para propor a resolução de outros problemas?

  1.  A dor da perda, o desejo de vingança e as “leis de ocasião”

Sem querer ignorar a dor dos que perdem entes queridos na mãos de pessoas em menoridade penal, será a melhor maneira de adentrarmos a este debate com a seriedade que ele exige, isto é, a partir de explosões emocionais? Evidentemente não podemos pedir às famílias que perderam entes queridos para serem “razoáveis”. Trata-se de uma dor incalculável, especialmente quando isto se dá de maneiras tão bárbaras como as que trazem quase que periodicamente este debate para o centro das discussões. Muito provavelmente no lugar destas famílias eu desejaria vingança. Mas isto está na ordem da subjetividade, da dor sentida e vivenciada pelas pessoas – e mesmo diante de situações semelhantes vemos reações diversas. No entanto, querer que o Estado tome como referencial o clamor de grupos/famílias envoltos em suas dores, vai de encontro a tudo que temos construído enquanto ideal de sociedade. Isto não abre caminho para as chamadas “leis de ocasião”?charge110513

A redução da maioridade penal vem apenas em resposta ao clamor de uma parcela da sociedade, servindo de apelo em prol de votos, mas que denuncia um preconceito de classe. Todos os dias pessoas vêm sendo mortas, uma boa parcela de jovens. No entanto, só periodicamente vemos esse tipo de levante. Coincidência? Não mesmo! Os que morrem todos os dias são jovens, em sua maioria pobre e negra, invisibilizada cotidianamente a partir de uma ação seletiva do Estado. O que vemos é um desejo de vingança disfarçado em clamor por justiça!

  1.    Mérito, destino, índole: Quem lota as cadeias e unidades de internação no Brasil?

Quem nunca ouviu a frase “Querer é poder!”? Creio que, se não todos, a maioria. Esta frase remete a algo que é um dos pilares da sociedade moderna e capitalista: o discurso meritocrático, isto é, toda uma crença moderna que enxerga os sucessos e fracassos como sendo estritamente de ordem individual. Então se você ascende socialmente isto é devido estritamente aos seus esforços. Tal discurso tende a ignorar as trajetórias dos indivíduos, contextualizá-lo dentro da rede de relações que o entrecruzam. Isto tem tudo a ver com a ideia de Adam Smith, de que todos nascem iguais, mas só esforçados atingem o sucesso. Baseado nisso tem quem acredite, por exemplo, que as pessoas são pobres por que querem, já que só lhes falta força de vontade.

Defendo que ao invés da afirmação poderíamos nos perguntar: “Querer é poder?” ou “Para quem querer é sinônimo de poder?”. A crença na meritocracia finda por contribuir para a manutenção de diferentes formas de desigualdade, chegando a sugerir que o sujeito que não consegue romper com sua situação, por exemplo, de miséria, é o culpado. Tal pensamento serve de base à lógica neoliberal, que é contrária a qualquer tipo de intervenção estatal, por exemplo, em programas como Bolsa Família, cotas, etc.

De certa maneira, a este discurso somam-se outros contemporânea e historicamente perigosos. O primeiro é o que vê algumas pessoas como naturalmente mais capazes do que outras, quase como se houvesse algum tipo de destino para a pessoa que esteja totalmente livre de influencias do que chamamos de sociedade. Tal ideia tem o potencial para defender que alguns são superiores aos outros. Continuando com este raciocínio, ao olharmos para as cadeias, presídios, ou mesmo para as Unidades de Internação para adolescentes, vemos majoritariamente pessoas advindas das classes mais pauperizadas, e, dentre esses, a maioria é negra. Oras, se alimentarmos a noção de mérito e de capacidade, vamos então defender que a maior parte da população é pobre por ser negra, ignorando todos os processos históricos que embasaram, e ainda embasam isto.

Muito próximo a isto, e com o mesmo potencial fascista, estaria a ideia de índole, isto é, de que algumas pessoas seriam naturalmente tendenciosas ao “desvio” – sem perceber que a ideia de desvio existe como conseqüência da ideia de regra, normalidade, etc. O problema ai é quando olhamos mais uma vez para as cadeias e unidades de internação, vemos hegemonicamente negros que se apertam naqueles espaços insalubres. Eles seriam de uma só vez um conglomerado de gente que merece aquela situação de indignidade por não ter tido força de vontade para “andar na linha”; gente com menos capacidade, e por isso não conseguiram ascender, indo para a marginalidade; e pessoas com índole para fazer o “errado”?

Ao contrário disto, compreendo que a predominância de negros neste contexto deve ser pensada a partir do pano de fundo que une a maior parte dessas pessoas: a desigualdade de classe e o racismo, que no Brasil é reproduzido por meio de um discurso velado, o qual cria obstáculos para que a maior parte das pessoas negras tenham acesso e incentivos, materiais e simbólicos. Longe de querer cair num discurso vitimizador, cabe perguntar: Sobra um leque muito grande de escolhas quando, além de advir da pobreza ou miséria socioeconômica, até a sua cor advoga contra você? Ao contrário do que defendeu esdruxulamente o famigerado Marcos Feliciano – que ao menos expôs o que pensava – as desigualdades se construíram historicamente, e ganharam aparência de natureza, e enquanto não são questionadas assim permanecem.


A realidade das cadeias e unidades de internação atualmente é que elas se destinam, quase que totalmente, como já dito, a pessoas pobres e negras, evidenciando o que venho chamando de ação seletiva do Estado. Lutar pela redução da maioridade penal é atacar a consequência desta ação seletiva e não a sua causa. Trata-se de um recurso falseador: tiram o foco do Estado, sua ação seletiva, e constroem a imagem de um indivíduo problema. Como já se destacou, isto faz parte das práticas necessárias para que uma sociedade de classes – e por isso inevitavelmente desigual – sustente suas práticas. Como bem destacou o jurista Luiz Flávio Gomes, ao pensar sobre a lógica da exclusão e desigualdade: “Primeiro dizimamos um determinado jogador da equipe, deixando-o esquálido e apático; depois queremos que esse ente cambaleante, que dificilmente se sustenta sobre suas próprias pernas, possa, em campo, resolver uma complicada partida. Incongruência absoluta e rematada do pensamento consumista e capitalista selvagem. Se o que acontece atualmente nas unidades de internação, fundações casas, já aponta para uma relação perversa dos menores de idade com facções do tráfico, o que pensar do que acontecerá quando estiverem sofrendo as mesmas penas que os adultos? A violência juvenil decorre da falta de rigor da lei ou do fato de que parte das instituições de adolescentes funciona na prática como um campo de concentração? Antes de tentar mudar a lei, não seria mais racional cumpri-la?

Desejo imensamente que o resultado de hoje – a aprovação da maioridade penal – não passe numa segunda votação! Se isto acontecer, apesar da pessoal desilusão, que o Senado vote contra! Do contrário, o suposto avanço anunciado pela Folha será, por fim das forças, prova de que o Brasil compreende marcha-ré como progresso!

Texto publicado originalmente em: https://desejosreticenciados.wordpress.com/2013/06/08/a-quem-interessa-a-reducao-da-maioridade-penal-parte-1/

Gilson Rodrigues Jr

Bacharel em Ciências Sociais (UFRN) e antropólogo - mestre e doutorando pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi professor substituto da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde permanece ministrando aulas no curso de Ciências Sociais (EAD). Tem experiência nos seguintes temas: desigualdades, marcadores sociais da diferença; remanescentes de quilombo e antropologia do direito/ jurídica. Atualmente se dedica a estudar no processo de doutoramento a interface entre ações humanitárias, Estado e religião,

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