Rio Grande do Norte, sexta-feira, 19 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 3 de julho de 2015

Não, não #somostodosMaJu

Maju_racismo“A coisa tá preta”, “Estou de luto, vou usar preto”, “preto de alma branca” e “amanhã é dia de branco”! Essas são algumas das expressões comuns de serem ouvidas cotidianamente… As duas primeiras usam a cor negra para remeter a algo ruim, a terceira soa para quem usa como um elogio, e a terceira, resumidamente quer dizer que quem trabalha é o branco…

“Qual o problema? Isso é cultural!” Dirão alguns, e é exatamente esse o problema! A língua, seus usos cotidianos, e, inclusive, essas expressões, tem uma história, geralmente muito antiga, fruto de disputas, nas quais muitos foram subjugados porque outros acreditavam que eram superiores. Ah, outra coisa,  quando dizemos “algo é cultural”, dizemos também que não é “natural”,  que pode ser combatido, desconstruído, dando espaço a algo novo.

Hoje tive a alma, a consciência e a minha pele violentada ao ler noticias e comentários de muitas pessoas acerca da Maria Julia Coutinho, jornalista da Rede Globo de Televisão – primeira garota do tempo negra, que sofreu nas redes sociais e sites vários ataques racistas! Não demorou muito, após ler todo o discurso de ódio de pessoas que mais pareciam víboras venenosas esfomeadas, me enviaram um vídeo. Nele Willian Bonner e parte de sua equipe, todos de pele branca, gritavam empunhando cartazes: “Somos todos Maju”… Preferia que não tivessem feito, tanto porque não mencionam o porque daquela manifestação, mas também por não passar de um engodo!!!
Minha primeira atitude diante disso? Chorei! Há muito tempo não chorava tanto… Perceber todo esse discurso de ódio direcionado à Maria Júlia doeu na alma, de um jeito que ainda não consigo dimensionar!!!!!!

Maju_racismo 2

O mundo não está mais fascista, racista, ele está o que sempre foi! A diferença é que em meio a tanto fascismo há brechas em todo sistema, e por essas brechas vamos agindo, resistindo! Há mudanças, tanto que hoje a Igreja Católica, poucos séculos depois, reconhece que eu tenha uma alma, está escrevendo esse texto…

Chorei por empatia e por identificação! Ser odiado por qualquer motivo é triste, e mostra a pior face desse tipo de humanidade que somos, mais ou menos, responsáveis! Ser odiado APENAS por ser quem se é patológico, e não tem relativismo no mundo que me faça pensar diferente!

Tal situação e dor me fizeram voltar a um texto escrito há um ano e meio – “Manifesto de um preto de sorte”, escrito como uma reação ao episódio em que jovens cariocas, brancos e representantes da classe média, disfarçando seu sentimento de ódio e posando de justiceiros, espancaram, torturaram (arrancaram um pedaço da orelha) e deixaram outro jovem carioca – negro e morador de favela – nu, amarrado a um poste.

Aquilo causou uma revolta semelhante a que sinto hoje – e que na verdade sinto todos os dias! Não vejo aquele rapaz como um “anjo de candura”, ingênuo, ou qualquer coisa do tipo! Não sabia definir o que era, mas sentia algo quase como uma dor física!

yvonne-bezerra-melo-3Um ou dois dias depois tive uma pista do que sentia, e dos porquês, quando vi que um amigo havia recortado uma foto sua e posto no rosto do rapaz. Aquilo falou profundo na minha alma, tanto que fiz o mesmo com a minha foto, mas nunca poderia dizer que eu sou aquele adolescente, ou algo do tipo.

Passei por algumas coisas na vida, algumas muito boas, outras desgastantes e indesejadas. Todas elas, inclusive as “merdas” que fiz , serviram de adubo para os caminhos que venho trilhando! Passei longe de querer roubar o que quer que fosse, mas a questão que se coloca, a meu ver, é: Que pano de fundo possibilitou isso? O que torna alguém ordeiro? O que torna alguém “desviante”?

Se minha história, aprendizados, caminhos, descaminhos e, sem sombra de duvidas, as oportunidades – dentre outras várias questões – tivessem sido outras, não poderia hoje ser eu amarrado ao poste?
Quantas vezes vi subirem o vidro do carro porque parei a bicicleta ao lado?

Quantas vezes não fui confundido com trabalhadores e não cliente, quando era o único negro  sentado e consumindo?

Quantas vezes os policiais não me olharam de cima abaixo, mesmo antes dos dreads?

Quantas vezes não vi pessoas surpresas por ter sido professor substituto em uma universidade federal? Alguns já dissera: “Ah, é porque você é jovem”. Isso não se sustenta, já que boa parte dos meus colegas também são! E quanto aos dreads, esses apenas potencializam certos problemas, mas abrem certas portas que me orgulho muito de encontrar escancaradas!

Quantas vezes olhei ao redor nos lugares que frequento, e constatei que era o único negro sentado, enquanto os demais estavam servindo: limpando o chão, entregando os óculos 3-D nas entradas das salas de cinema, ocupando as cadeias e as antigas FEBEN’s?

Ando sempre com a carteira de estudante, contra-cheque, ou qualquer outro documento que remeta a um status não garantido pelo RG. Certamente tem a ver com um medo, e não com o acesso a meia-entrada, por exemplo. Sim, medo! Medo de ser abordado pela polícia, que poderá agir de outra maneiram quando souber que não estão lidando com “um neguinho qualquer”!

Em uma sociedade regida por uma economia monetária – lembrando o sociólogo George Simmel – onde tudo e todos são reduzidos ao “quanto”, onde cidadania –  um conceito complexo – reduzido a capacidade de consumo, o que podemos esperar? Em uma sociedade de classes, que para se manter, precisa que as pessoas acreditem serem merecedoras das suas riquezas, e outras da sua miséria, o que esperar? Em um mundo que permanece sob a lei de Talião, o que se pode esperar?

Ah, e antes que esqueça… Não me venham, por favor, reduzir toda a discussão sobre racismo à tonalidade da pele falando “Mas você não é negro, é moreninho!” Sou negro, sim! Posso não ser da cor do rapaz da foto acorrentado, ou da jornalista! Isso pouco importa! Reconheço-me enquanto tal, pois isto remete a uma trajetória, mas também a uma postura de enfrentamento de quem, mesmo tendo usufruído de alguns “privilégios”, sempre foi a exceção…

Fui, obrigado a ouvir coisas como: “O único preto que meu pai gosta é o cachorro que criamos”, dentre outras. Ah, sei que sou preto também, pois quando me xingam, quando me olham, quando duvidam da minha profissão é disso que me chamam! Aceito, não por resignação, mas enquanto ação política, que anda comigo sempre, portanto, mesmo quando não desejo militar, milito!sou-negao

Como já disse, não sei o que é estar no lugar daquele adolescente, ou da Maju, tendo em vista o pano de fundo e as diferentes experiências que nos entrecruzam. Por outro lado, poderia ser eu e muitos amigos queridos, tratam-se de outras pessoas, ele adolescente negro, periférico! Ela, uma mulher, negra, e também uma exceção.

Há muito mais a dizer, mas cansa! Estou cansado de ver isso todos os dias! De sentir certas angustias na pele, na cor, na mente!  Estou cansado de ser, como já ouvi, “um negro de sorte”! Cansado de tanta hipocrisia e falta de sede de justiça, quando isso não mexe diretamente no seu calo!

Toda a solidariedade a Maria Julia, mas me desculpem aos que usarem a hastag ‪#‎somostodosmaju‬! Isso é uma downloadmentira! Há uma dor que só ela sente! Há outra dor que só quem compartilha com ela sãos as negras e negros nessa escrota “democracia racial”, defendida, inclusive pelo chefe direto da jornalista, Alli Kammel.

O que as pessoas podem fazer, então? Ser parceiras da e na luta! Se colocar lado a lado, mas não podem SER!

Choro agora de raiva, de revolta, mas não em busca de revide, já que tudo isso tem raiz em diferentes formas de opressão! Entretanto, considero genial o que fez o rapper Emicida, quando nos provoca a pensar sobre como seria uma inversão desse quadro (veja o vídeo aqui)! Não se trata de um desejo, mas talvez o incomodo que o vídeo cause, ajude aos os leitores e leitoras terem alguma vaga ideia da dor aqui expressada!

Que nossa revolta seja graciosa!

Que toda forma de opressão seja punida!

Que o Amor, em toda sua diversidade, se sobressaia!

Como disse a Maria Júlia Coutinho sobre os ataques sofridos:

“Eu não esmoreço, e nem perco o ânimo! Os cães ladram, mas a caravana passa. Os preconceituosos ladram, mas, os racistas não passarão!

 

Racismo_crime

Gilson Rodrigues Jr

Bacharel em Ciências Sociais (UFRN) e antropólogo - mestre e doutorando pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi professor substituto da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde permanece ministrando aulas no curso de Ciências Sociais (EAD). Tem experiência nos seguintes temas: desigualdades, marcadores sociais da diferença; remanescentes de quilombo e antropologia do direito/ jurídica. Atualmente se dedica a estudar no processo de doutoramento a interface entre ações humanitárias, Estado e religião,

6 Responses

  1. Nilton Jr disse:

    Não passarão!
    Uma vez ouvi um cara falando sobre como explicava se ele se considerava negro, pois ele não era tão preto. Ele disse que respondia com uma pergunta: “se ainda houvesse escravidão, eu estaria na casa grande ou na senzala?”. Ele disse-me que todos sempre entendiam.

  2. sonia Regina marques disse:

    Sou negra sim!!! Sonia Regina
    ..

  3. Francisco Couto disse:

    “arrancaram”…pretérito e não futuro,certo?

  4. Cláudio Macedo disse:

    Muito bom seu texto, parabéns!! Só gostaria de comentar que ninguém pode sofrer as dores do outro. É lastimável o que fizeram com a moça, mas não é execrável o que fizeram para defendê-la! Mesmo acreditando ser um modismo, mesmo que esses que defendem sejam os mesmos que falam “Negra linda”, merecem o mérito de tê-lo feito… É assim que a sociedade evolui!

  5. Andrea disse:

    Não sou negra e não me sinto melhor por isso. Tenho dois irmãos que são meus irmãos pelo lado materno, eles são negros… As pessoas sempre comentaram achando estranho, dizem que são “muito” diferentes de mim, nunca achei eles tão diferentes assim.
    Minha irmã ja sofreu preconceito, de uma mulher quando ela passeava na praia com o nosso cachorro…ela chegou em casa chorando; a mulher falou que não queria o cachorro de uma negrinha andando próximo ao dela.
    Fiquei com tanto ódio que sai p procurar essa mulher na praia, pena que não achei!

  6. Aliciana disse:

    Seu texto foi perfeito! Porém, quando falamos “somos todos maju” e porque a nossa alma sente uma angustia de ver absurdos como esse acontecendo. Minha alma dilacera, enquanto educadora, de ver que por mais que faça nunca será o bastante para liberta todos de qualquer forma de intolerância. Somos todos Maju, porque não aceitamos mais absurdos como esses, que vc mencionou e outros.

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