Rio Grande do Norte, sábado, 20 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 15 de julho de 2015

Quando não ler é uma benção

postado por Rodrigo Sérvulo

Há várias formas e maneiras de ler porque há várias formas de interpretar e conhecer o mundo. Lemos blogs, jornais, revistas, postagens em redes sociais e, claro, livros. O livro, esse objeto sagrado para uns e indiferente para outros, contém as mais variadas formas e conteúdos.

foto-livro-03

imagem extraída do google imagens

Acontece que nunca entendi os pedantes e incoerentes defensores desse objeto. Quase sempre com um quê irônico e ar superior fala que a juventude de hoje não lê, que a falta de senso crítico decorre pela falta de leitura de livros, que ninguém mais pensa porque não lê livros, e outros tantos absurdos que pode sair da boca de alguém que, paradoxalmente, não aprendeu com a enxurrada de livros que leu durante a vida.

Hoje presenciei algo que reforça o meu argumento de que nem todo leitor de livro é inteligente, assim como mandar ler um livro é, às vezes, tão incoerente quanto pular em uma piscina e não querer se molhar.

Estava eu na estação de ônibus, quando um senhor de mais ou menos 60 anos chegou para mim e disse: “Vocês jovens não largam o celular”, eu, ainda com sono olhei pra ele e falei: “É”, e ele continuou o quase-monólogo:

– Meu neto fica o dia nesse celular, ele tem um igual o seu, quando não é nisso é no computador, não abre um livro pra ler. Acho um absurdo...

– Já tentei de várias formas dar livros para ele ler. Mas ele prefere ficar na internet. Percebo que internet deixa a pessoa estúpida e intolerante. Quando falo com ele… ele me rebate com umas ideias sem nexo.

– Que ideias?

– Ele dia desses tava defendendo o casamento gay americano, o que a gente tem a ver com isso? Fica lendo essas besteira, aí vem defender cotas, e outras coisas que esses comunistas ficam falando na internet sem embasamento nenhum… Não leram história, aceita tudo o que falam por aí, não tem posicionamento crítico.

– Hunrum…

– Pra você ter ideia, dia desses comprei um livro do Olavo de Carvalho pra ele, muito bom falando, para ele refletir sobre o país que vive, e ele simplesmente disse que não ia ler porcaria… porcaria? Chamar um livro de porcaria! Já pensou?

– Que outros autores de livros você gosta de ler?

– Rodrigo Constantino, Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, muitos outros tão bons quanto esses…

Nessa hora meu ônibus chegou e senti o mesmo alívio de quando você está muito apertado e consegue, enfim, ir no banheiro aos 49 do segundo tempo.

E fui o meu caminho inteiro pensando que, às vezes, não ler livros é uma benção.

 

 

 

Rodrigo Sérvulo

Literatura, artes (marciais), humor, sociologia, filosofia e cultura.

3 Responses

  1. Mário Barbosa Villas Boas disse:

    Fique abençoado em companhia de outros abençoados que, como você, se afasta dos livros. Quanto a mim, prefiro a companhia deles e também da internet. Um não exclui o outro. Ler não significa necessariamente aceitar passivamente a opinião do autor. Mas no meu caso, como no de seu interlocutor, concordo com a maioria (não todas) as idéias dos autores por eles citados.

    Por causa de “abençoados” que, como você, não gostam da companhia de livros, o Brasil e vários outros países do mundo estão numa crise econômica que pode até culminar numa guerra, num futuro próximo.

    • A questão que tento colocar no texto está na valoração do objeto livro enquanto argumento para qualquer supremacia de conhecimento. O livro é superestimado e, às vezes, visto como um único meio de se adquirir conhecimento válido. É óbvio que a maioria das pesquisas científicas, das obras literárias e filosóficas estão lá, nos livros, e há muitos livros interessantes, que produzem no leitor uma reflexividade crítica diante das coisas. Mas também há muito lixo, muita teoria não-embasada, muita doxa, muito cinismo e reprodutividade de ideias caducas. E é a partir disso que está fundamentada a minha “benção” de não-ler. Em suma: diante de tantas formas de se produzir e buscar conhecimento, mandar ler livros não se torna um argumento válido para quem acha que uma sociedade deve avançar civilizatoriamente. Certos livros, em seu conteúdo, mostram o contrário.

      Mais uma coisa: em meu texto falo “ÀS VEZES, não ler livros é uma benção.” “Às vezes” não quer dizer “sempre”, e sim: “de vez em quando”, “volta e meia”, “casualmente”. Logo, podemos chegar a conclusão que, no meu texto inteiro, não faço elogio à não-leitura e, sim – repito – a não-leitura de certos livros.

      • Caro Rodrigo, em primeiro lugar gostaria de pararabenizar-lhe pela ótima crônica, assim como pelas observações nela destacadas. Penso que você foi bastante claro na defesa do seu ponto de vista, quando sugeriu que “ÀS VEZES, não ler livros é uma benção.” Concordo plenamente com você. O problema está no maniqueísmo de alguns, que os impedem de entender o que você está abordando.
        Aproveito ainda para pedir ao ‘abençoado’ Mário Barbosa que explicite a relação que ele vê entre não ler certos livros e a crise econômica mundial. No meu modesto entendimento de economia, a atual conjuntura deve-se em grande medida à crise do subprime, a qual foi ocasionada pela ganância especulativa do sistema financeiro internacional.

Crônicas

Pobre João, pobre de nós.

Crônicas

A grande tragédia de nossos dias