Rio Grande do Norte, terça-feira, 23 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 1 de agosto de 2015

Adílio dos Santos, SuperVia e o dilema do vagão

postado por Lázaro Barbosa

Existe um experimento moral em ética denominado dilema do vagão. A primeira versão do problema é de Philippa Foot, mas uma das versões mais conhecidas é a de Michael Sandel (um resumo em português do argumento de Sandel pode ser encontrado aqui). Nas duas versões do dilema, há cinco pessoas que fatalmente morrerão atropeladas por um trem desgovernado – a menos que se tome uma providência.

Na primeira parte do dilema, o trem desgovernado segue em direção a cinco homens que estão trabalhando no trilho. Não há como parar o vagão; ele atropelará os cinco homens, e o freio está quebrado. No entanto, pode-se perceber um desvio, com apenas um homem trabalhando no outro trilho. As opções: deixar que o vagão siga seu rumo e mate os cinco trabalhadores do trilho principal ou desviar para o outro trilho, matando apenas um trabalhador. Deixo a resposta para você.

Na segunda versão do dilema, não há possibilidade de desvio. O mesmo trem desgovernado, os mesmos cinco trabalhadores que serão atingidos. O freio também emperra, e não há como avisar os trabalhadores da tragédia. A diferença é que, sobre o trilho, existe uma passarela pela qual passa um homem gordo. As opções: deixar que o vagão siga seu rumo e mate os cinco trabalhadores, ou empurrar o gordo em cima do trilho para salvá-los. Novamente, deixo a resposta a você.

As duas versões do dilema do vagão

As duas versões do dilema do vagão

Qual é o ponto do dilema? Sandel sugere que existem casos nos quais é difícil decidir qual é a coisa certa a ser feita. Uma forma de compreender melhor, segundo ele, é pensar não na consequência do acidente para as vítimas, mas na intenção da pessoa que toma a decisão (desviando para o outro trilho ou empurrando o homem gordo). Outra possibilidade seria admitir a existência de um princípio em ambos os casos: matar uma pessoa inocente para salvar a vida de tantas outras. Também é difícil explicar por que, à primeira vista, é mais aceitável desviar o vagão do que empurrar uma pessoa diretamente para o trilho. Em todo caso, a dificuldade continua.

Mas vamos deixar de filosofia e voltar para o Rio de Janeiro. Terça-feira passada (28 de julho), Adílio Cabral dos Santos, vendedor ambulante nos trens, foi atropelado por um trem da SuperVia, a empresa que cuida do transporte público ferroviário carioca. Minutos depois, no entanto, um segundo trem passou por sobre corpo do homem, que era ex-presidiário e estava tentando reestruturar a vida desde então.

Não há como saber se ele já estava morto quando o primeiro trem passou por cima. Mas, a julgar pelo G1, duas coisas são certas. O Corpo de Bombeiros afirmou que a SuperVia os acionou apenas duas horas após o acidente, ao contrário do afirmado pela empresa de que os bombeiros foram acionados imediatamente; o corpo de Adílio foi encontrado por acaso, quando os bombeiros já se encontravam a caminho de outra chamada. O secretário de transportes do estado do Rio sugeriu a existência de uma falha dos controladores da ferrovia, visto que o trem poderia estar irregularmente no trilho.

A SuperVia, por sua vez, anunciou que, mesmo com o corpo no trilho, autorizou a passagem do segundo trem porque não haveria risco de esmagar o corpo (os vagões teriam altura suficiente pra passar por cima) e, caso parassem o trem, os passageiros desceriam no meio da linha, aumentando o risco de incidentes. Esse trem que desviou liberou espaço para que outros dois trens desviassem, segundo o El País.

À primeira vista, alguém pode relacionar o dilema do vagão ao atropelamento de Adílio dos Santos. Por via das dúvidas (não se sabe se o primeiro trem provocou a morte dele ou se ele já estava morto), seria melhor deixar que o segundo trem avançasse para evitar congestionamentos e prováveis acidentes, principalmente por se tratar de horário de pico. Mais valeria, então, prevenir do que remediar. Mas isso não resistiria a um segundo exame por pelo menos dois motivos: o tratamento dado ao corpo de Adílio, como se fosse descartável, e o anúncio da morte de Adílio em segunda mão – a mãe, Eunice de Souza Feliciano, só soube do ocorrido pela TV. Ou seja, o erro, em primeiro lugar, foi tanto da Supervia pelo tratamento dado a Adílio dos Santos e sua família quanto do poder público, pois nenhum deles se preocupou com o devido isolamento da malha ferroviária. E aqui entra minha discordância em relação a Sanders: não dá para pender a balança simplesmente para a intenção do agente moral em evitar maiores estragos e retirar, assim, o peso das consequências dessa ação. Tentando evitar um problema maior, a SuperVia encontrou outro pior: a comoção pública (que provavelmente não será maior, dada a situação de Adílio, que era negro e ex-presidiário) e a possível (provável, espero eu – mas não dá pra ter certeza até o fim das investigações) punição dos responsáveis pela Justiça carioca, além da exposição da fragilidade do sistema ferroviário carioca. (Não que denunciar as dificuldades de melhoria da malha ferroviária seja um problema em si: o problema foi esperar por um acidente como esse – para não falar de outros, que atrapalham o andamento do transporte público ferroviário e colocam em risco a vida da população que dele precisa.)

E foi justamente (!!!) a justiça (!!!) social que falhou com Adílio dos Santos. Impedido de vender doces nos trens sob pena de apreensão, negro, recém-saído da prisão (ano passado), suas chances de inserção socioeconômica eram mínimas. O dilema do vagão, para Adílio, não consistia entre escolher entre uma vida ou várias, mas em lutar pela própria sobrevivência: ou ele cedia à lei e deixava de passar pelas estações com seus doces, ou então ele pulava na linha. Ele pulou na linha e morreu. No entanto, dada sua condição socioeconômica, será que demoraria tanto para que morresse por invisibilidade diante do poder público e da sociedade? O dilema do vagão, para Adílio e para tantos Adílios que seguem nas malhas ferroviárias da vida, tem um nome que muitos insistem em não enxergar: racismo estrutural. E o racismo estrutural não consiste simplesmente na mera opressão étnico-racial, mas na penetração dessa opressão nos mais variados níveis – incluindo a linha do trem. Duvida? É só contar quantos brancos vão pro trem vender artigos variados pra sobreviver. Quem sofre o racismo estrutural corre todos os dias o risco de morrer de esquecimento, de fome, de bala na cabeça ou de atropelamento por um trem (ainda que não seja o caso).

Lázaro Barbosa

Nômade, cosmopolita, nerd e chato.

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