Rio Grande do Norte, sexta-feira, 29 de março de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 4 de outubro de 2015

Além do espetáculo esportivo

postado por Rafael Morais

canario-da-terraEra uma segunda-feira, dia atípico para a prática do futebol. O time daquela cidadezinha bonitinha, Parelhas, iria naquela tarde, enfrentar o tradicional ABC de Natal, o Mais Querido da capital.

Tenho o costume de, sempre pela manhã cedo, sair pra caminhar na rua, conhecer a cidade onde estamos. Eu adoro passear antes dos jogos.

Lembro-me muito bem, da rua larga de paralelepípedos simétricos, bem cuidados. O hotel pequeno, onde estávamos hospedados dava de cara com a porta de entrada da cidade, a rodoviária.

Naquele dia, de longe ouvi um canário cantando pra caramba. Olhei e reparei de onde vinha aquele canto forte e estalado. Era um Canário-da-Terra, muito encontrado em boa parte do Nordeste, onde a criação é bastante popular por conta do seu canto forte.

Vinha de uma casa que ficava a umas duas ou três quadras do hotel. Era uma casa verde, baixinha. Vi um senhor magro, de bigode fino, que aparentava já seus 60 anos, sentado na frente dela, debaixo de uma sombra de uma árvore, com várias gaiolas penduradas ao seu redor.

Na calçada, numa cadeira de balanço, alheio e pouco convidativo a comparecer ao estádio Laurentino Bezerra naquela tarde – na verdade, aquele homem sequer sabia que o ABC estava ali, hospedado, há poucos metros do sossego do seu lar – o senhor perguntou o que estávamos fazendo ali.

Eu disse – Mas o senhor não sabe? Viemos pra jogar contra o time daqui.

O cabra fez uma careta, enrugando ainda mais a pele da testa já bastante enrugada pelo efeito natural do tempo, e retrucou: – Vão tomar uma pêia de 3 a 0.

Aproveitei a brecha dada, o esperei “cantar grosso”, e fiz a proposta: – O empate é seu, aposto R$ 50,00 no canário-da-terra.

Áquela época, um canário da terra cantador daqueles custava na faixa de R$ 300,00 ou mais. Quando ele me disse os que criava pras rinhas de briga, não aguentei. Eu os crio pra cantar.

Depois do jogo, vencemos, obviamente, fui lá à casa do senhor buscar meu prêmio. Não é que ele não queria entregar o canário?! – Ué, não vais entregar, bah? Tu és ou não és homem?

Depois de muita conversa fiada do senhor, consegui convencê-lo a entregar o canário-da-terra cantador.

A partir daquele momento, tive a absoluta certeza de que aquele tal futebol ia muito além de meter o pé na bola, chutando-a pra frente. Muito além do espetáculo esportivo. Além das emoções da grande área, dos vestiários, da boca do túnel e do fundo das redes.

Como disse um dia Nelson, com seu padrão inigualável Rodriguiano, de quem observava o esporte além do horizonte limitado de um jogo, o futebol é o ópio do povo.

Compreendi como uma mera partida de futebol poderia, inclusive, salvar a alma de um pobre canário-da-terra julgado a morrer numa rinha de briga.

O canarinho, amarelinho, de canto forte e melódico, símbolo da seleção nacional de futebol, ficou comigo até um tempo atrás, quando tive de mudar de cidade e fui obrigado a doar todos os meus passarinhos a um amigo, com mais tempo pra cuidar.

Definitivamente, o futebol não é só bola na rede. É também o canto estalado e desesperado do canário, durante o dia, à espera da próxima rinha, o canto longo e áspero de sofrimento na madrugada, e principalmente, o mais melodioso e baixo, aliviado na viagem de volta à Natal, onde estaria, finalmente, salvo das maldades daquele senhor maltratador de passarinhos indefesos.

Rafael Morais

Comunicador Social pela UFRN. Experiência em assessoria de imprensa esportiva e atuação em televisão. Áreas de interesse: literatura e esportes em geral, com ênfase no futebol como a "teatrialização das relações humanas".

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