Rio Grande do Norte, quarta-feira, 24 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 20 de novembro de 2015

Consciência de quê? Consciência para quem? algumas questões sobre a permanência do racismo e seus efeitos

consciência negra“Não aceito convites para falar durante o mês de novembro, porque nós negros sofremos com o racismo o ano todo, mas só no final dele é que querem nos ouvir sobre!”. Essa frase me foi relatada recentemente e suscitou em mim as perguntas que servem de título a esse texto, especialmente porque minha postura tem sido exatamente o inverso. Esse texto é fruto de alguns desses momentos em que fui convidado a falar acerca das minhas percepções sobre o racismo no cotidiano brasileiro, e porque não dizer, da minha consciência enquanto negro.

Talvez por uma falta de conhecimento do significado que o dia 20 de novembro tem aqui no Brasil, e possivelmente por uma dificuldade em exercitar a empatia, a pessoa que disse negar esse tipo de convite tenha proferido a referida frase. Tratava-se de um estudante moçambicano, provavelmente, representante da elite de seu país, como a maioria dos estudantes que vem do continente africano para nossas universidades, sendo, felizmente, muito bem recebidos! Tal postura, a meu ver, se aproxima da ideia do excelente ator Morgan Freeman, quando além de falar que “dia da consciência negra é algo ridículo, também disse que a única forma de se combater o preconceito era não falar sobre ele! Devo concluir que se eu pisar em um prego, não devo expressar a dor que isso causou, e assim a dor vai deixar de existir! Brilhante!!!! racism

Não se trata aqui de fazer apologia de uma postura xenofóbica, mas de levantar alguns dos porquês de posturas que prestam desserviços aos negros e negras brasileiros! Penso exatamente o contrário! A inquietação e incômodos têm de ser denunciadas e expostas, por isso, ainda que me surpreendendo com os convites que vim recebendo ao longo deste mês, tenho tentado aceita-los. Fico feliz com as indicações e convites, tendo em vista a importância de ocupar certos espaços, buscando suscitar trocas e debates acerca de um assunto tão urgente como racismo no cotidiano brasileiro! Entretanto, admito ser pego de surpresa ao recebê-los! E digo isso sem qualquer falta modéstia – algo impossível diante do meu “complexo de pavão” – mas, pois algumas reflexões sobre esta coisa de raça/etnicidade, enfim, “ser negro”, são bastante recentes.

O que me leva a seguinte pergunta: Por que no “novembro negro, ao nos aproximarmos do dia 20 – Dia da Consciência Negra –, estou recebendo tais convites? Será que a resposta seria pelo fato de ser negro? Duvido muito. Tendo em vista que, aqui entre os públicos para os quais tenho tido a chance de palestrar, há pessoas que eu poderia identificar como negras e que poderiam também se ver assim. Provavelmente elas teriam experiências sobre o racismo, tendo muito o que falar sobre suas experiências enquanto negros e negras em uma sociedade que empurra seu racismo para debaixo do tapete…

Se o fato de “ser negro” não dá conta da resposta, então em que mais podemos pensar? Quem sou? Qual a minha história? Qual o meu lugar de fala? Bem, responder a tais questões, neste momento, não remete simplesmente a um exercício egocêntrico de falar de mim, mas de problematizar o porquê de eu ser visto como alguém “que tem algo a dizer” e não o segurança do prédio, a empregada doméstica, o pedreiro ou mesmo o jovem pobre e preto das periferias dos grandes centros urbanos ou de cidades menores, inclusive aquele que está, ou já esteve, envolvido com o tráfico? Ora, quem disse que pessoas com essas histórias não tem o que nos dizer e nos ensinar? Suas histórias, conhecimentos e experiências são menos importantes que as minhas? Particularmente, não trabalho (e nem quero!) com esta hipótese.

piramide social de Karl Marx Existem muitas pessoas que acreditam na meritocracia – a ideia de que se chegamos a um lugar convencionado como de sucesso ou de fracasso – somos os únicos e/ou principais responsáveis por isso. Provavelmente muitos/muitas de vocês acreditem nessa ideia e poderiam responder estão aonde estão por conta do esforço próprio e, portanto, merece estar aqui! Se é isso que alguns, ou muitas e muitos de vocês, estão pensando, eu também preciso dizer que esta é uma hipótese que não legitimarei aqui! Por que? Para tentar responder isso precisamos recorrer a como a ideia de mérito e meritocracia se tornou tão “natural” para nós! Bem, um estudioso chamado Adam Smith pode, grosseiramente, ter seu pensamento resumido na seguinte frase: “Todos nascem iguais, mas só os esforçados atingem o sucesso!”. Outra maneira de dizer isso é: “Querer é poder”!”. Será mesmo que querer é poder para todos? Sem dúvidas todos/todas nós temos escolhas, mas será que o leque, a quantidade de escolhas foi igual para a gente? Acho que não temos dificuldades em concordar que não, mas temos grandes dificuldades e resistência em buscarmos compreender os possíveis porquês de sermos quem somos, fazermos as escolhas que fazemos e o mesmo para com os outros…

Existe um verbo que é a cara das/dos antropólogas e antropólogos pelo Brasil e no mundo: relativizar! É importante explicar que isto não tem nada a ver com justificar ou concordar com o que outro faz, pensa e, principalmente, considera como certo e errado. Relativizar é o exercício de compreender o olhar que o outro tem para realidade, buscando perceber que o nosso senso de moral, por exemplo, é apenas um entre tantos e que se qualquer um destes for imposto como universal, o que teremos é algo já conhecido por todos nós: a opressão.

Antes de entrar com maior profundidade no tema desse texto gostaria de oferecer uma resposta do porquê estou aqui falando para vocês: porque sou um privilegiado, que sim, sofre todos os dias com o racismo, mas que sente este sofrimento de uma maneira bastante distinta de tantos outros negros e negras. Se o vidro de carros se erguem quando estou pedalando pelas ruas das cidades; ou as pessoas não imaginam que eu posso ser um professor, mas um músico percursionista ou ainda um baiano, por outro lado, ainda que debaixo de voadoras, são as portas do universo acadêmico que, com muita insistência, vão se abrindo para mim. Isso porque com todo o esforço que eu e tantas e tantos  fizemos, nada adiantaria sem um preparo formal e não formal que, infelizmente, não está ao alcance de todas as pessoas!

Proponho-lhes uma pergunta: é mais importante termos todos os dentes da boca ou termos todos os dentes dianteiros? Sem dúvidas que do ponto de vista odontológico, pensando no bom funcionamento da boca, mantermos todos os dentes é mais importante! Agora pensemos acerca de duas pessoas com características e currículos semelhantes. Uma tem todos os dentes dianteiros, enquanto a outra tem dois dentes superiores e um inferior faltando. Qual delas vocês acham que terá mais chances de ficar empregada? Eu acredito piamente que será a primeira. Quais foram os motivos de exclusão da segunda? Sua capacidade? Sua falta de esforço? Não, sua aparência! Não quero resumir tudo a isto, mas quero problematizar como que as oportunidades são diferentes e excluem muitas pessoas em detrimento de algumas poucas privilegiadas!

Portanto, fico feliz em poder falar hoje aqui, mas não plenamente porque sei que as oportunidades, isto é, o pano de fundo, que tornaram esse encontro com vocês possível, foi uma trajetória que, ao mesmo tempo que me permite ter uma “consciência” crítica sobre o racismo, sua legitimidade, o que o sustenta, e seus efeitos, é a mesma trajetória que cria um hiato, um verdadeiro abismo entre a minha história, trajetória e a de tantos outros negros e negras deste país que grita, ainda, aos quatro cantos que se trata de uma democracia racial, isto é, onde supostamente não existe racismo! Não estou falando de um dente que falta, mas da cor da pele, algo que não pode ser arrancado ou posto, e de como isto coloca, a priori, algumas pessoas como menos merecedoras de credibilidade que outras!

“Seu progresso depende de firmeza de propósito. Enquanto o homem branco pode se desviar do caminho da justiça e, caindo na margem da estrada, tem de arcar individualmente com a culpa de sua fraqueza, qualquer fracasso de um membro da raça negra – e particularmente qualquer falha de um de vocês, que desfrutaram vantagens na educação – será interpretado com muita rapidez como uma recaída nos antigos modos de uma raça inferior. Portanto se, quiserem vencer o velho antagonismo, vocês têm de estar alertas o tempo todo. Seus padrões morais devem ser os mais elevados” (BOAS, 1906).

O trecho que acabei de citar foi proferido pelo antropólogo clássico, Franz Boas, que refugiou-se nos EUA, judeu-alemão, que ao longo das décadas naquele país viu que a promessa de que se tratava de uma terra que acolhia abertamente a diversidade étnico-racial e religiosa era, na verdade, um engano, fruto de uma visão idealista que teve num momento específico. É importante dizer que ele estava falando para a primeira turma de jovens negros, em um país, tal como o Brasil, que foi apontado como que “daria errado” devido a miscigenação. Outra coisa que muito me entristece é perceber como a fala de Boas é atual na nossa realidade. Os jovens negros são ainda minoria a ocupar as cadeiras acadêmicas e essa estatística tende a diminuir quando observamos aqueles que ingressam em cursos de mestrado e doutorado. E o quadro fica ainda menos otimista quando observamos quem são os professores universitários, em especial, mas não só, nas instituições públicas.

Negros e negras precisam reconstruir sua própria subjetividade , coletividade e sentimento de pertença, de modo a sentirem-se lindos e lindas, fortes, empoderados. Essa é uma busca por vezes esgotante, a qual  só se faz necessário diante de uma sociedade que sob o discurso criminoso de uma “democracia racial” finge que o racismo não impera em nossas relações cotidianas, sejam elas profissionais, nas amizades, nas sensações de medo e nas escolhas afetivas que fazemos. Se cada um desses temas, e tantos outros, fossem ser abordados e destrinchados precisaríamos de coletâneas e mais coletâneas de livros…democracia-racial

Neste ano completamos 127 anos de uma falsa libertação dos escravos. A famosa Lei Áurea, até onde sei, a menor lei em nossa história judicial. Não resta dúvidas que havia toda uma luta dos chamados abolicionistas, mas não era mais lucrativa, tendo em vista que os negros e negras escravizados não eram consumidores ativos e, portanto, não contribuíam para a circulação e acúmulos de capital para/do Capital. Houve uma abolição formal e que hoje reconhecemos inconclusa, tendo em vista que não modificou em quase nada a situação estrutural da população negra em nosso país, saindo da senzala e indo para as margens, de onde, em sua maioria, ainda não saiu!

Recentemente estive em um evento nacional na USP e me deparei com um óbvio choque: eu era o único homem negro participando ativamente do evento. Havia algumas mulheres, e, no evento como um todo, os/as nordestinos/nordestinas eram a esmagadora – ou esmagada? – maioria! No mesmo período ocorreu um evento de neurociência no qual seu principal convidado era um neurocientista norte-americano. Ele chegou, foi para o seu quarto no hotel – onde também estava ocorrendo o evento – e quando foi a um banheiro próximo ao roll de entrada, um segurança estava a sua espera. Ele não soube do ocorrido, tendo em vista que antes que o segurança o abordasse, a organização do evento agiu rapidamente, impedindo que o ‘racismo nosso de cada dia’ fosse esfregado na cara do ilustre convidado. Ainda assim, ele se posicionou, problematizou a situação fazendo uso do lugar em que estava e da formação que tinha, pois, infelizmente, “apenas” ser negro não garantiria isso!É por essas e outras questões que o Dia da Consciência Negra – o dia 20 de novembro – se faz necessário, e, provavelmente, um dos motivos para este evento está tão lindamente repleto de temas acerca de raça e etnicidade. Bem, o dia da morte de Zumbi dos Palmares, foi o escolhido em oposição, crítica e resistência ao dia dessa libertação inconclusa dos escravizados no Brasil.

Junto com essa data ouço e leio todos os anos pessoas dizerem: “Sou a favor do dia da consciência humana”. Primeiro: mesmo a percepção do que é humano não é universal. Povos diferentes em tempos e situações diferentes tiveram e têm percepções diferentes do que é ser humano. Segundo: o destaque para um dia específico – tal como o dia da mulher, o dia da visibilidade lésbica, etc – remete exatamente a explicitar que agrupamentos de pessoas que são minorias (apesar de ser muitas numericamente) do ponto de vista político, e, por vezes, invisibilizadas, em sua condição de seres humanos. O Dia da Consciência Negra de uma só vez se presta a homenagear aos negros e negras que nos antecederam – e que foram retratados apenas como escravos e depois marginais – a nós, que de uma forma ou de outra sofremos – percebendo ou não – com os efeitos excludentes, rebaixadores e criminosos do racismo.

Capa_M_e_Menininha_do_Gantois_Gravado_Ao_Vivo_no_Gantois_Salvador_b_Os mesmos que falam que ter um dia específico só reforça a segregação, são, em geral, aqueles e àquelas que falam que a Política de Cotas Raciais – da qual não fui beneficiado, mas sempre fui totalmente a favor – reforça o racismo. Não! Seja o dia específico, seja a política de cotas são necessárias por expor o racismo estrutural no qual está sociedade está baseada e que ainda muito se esforça para manter.

Tais iniciativas suscitam sim o conflito, o que é positivo. Infelizmente temos o péssimo hábito de ver os conflitos como algo negativo, quando eles são capazes de expor opiniões, inquietações e abrem espaço para a movimentação – isto é para a possibilidade de mudanças! É a entropia para usar um termo da física… A energia cinética para usar um da química… Ou como cantou, e canta, Chico Science: “Posso sair daqui pra me organizar/Posso sair daqui para desorganizar/Posso sair daqui pra me organizar/Posso sair daqui pra desorganizar/da Lama ao caos, do caos a Lama/um homem roubado nunca se engana”.

O “lugar de privilégio” que me permitiu escrever esse texto, debatendo com pessoas conhecidas, ou não, só é possível em uma sociedade de classes, é ele que me distancia de tantos outros negros e negras, devido as diferenças em nossas trajetória. Foi também este lugar que possibilitou-me perceber o quão estamos próximos, pois a cor de nossa pele – linda por sinal, em toda sua diversidade de tons – nos coloca no lugar de homens e mulheres roubados…

Roubados em nossa dignidade! Roubados nas oportunidades que poderíamos ter! Roubados por uma sociedade que se diz igualitária, mas que tenta equalizar a realidade entre as inevitáveis formas de legitimar a igualdade e isto! Não se trata de cairmos em um vitimismo, mas de que a percepção do racismo e seus efeitos sejam percebidos independente da nossa formação acadêmica, profissão, ou status!

Abdias de Carvalho

Abdias de Carvalho

Que saiamos do nosso lugar de “elite pensante”, de quem reafirma o hiato entre “nós e os outros” e que busquemos ouvir o que é dito nas ruas, nas periferias, por nossos alunos e alunas. Não é fácil, pois exige um trabalho de desconstrução e de honestidade do qual me sinto ainda muito distante, mas que acredito ser mais do nunca urgente…

Infelizmente, como cantou recentemente Khrystal, “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, e continuará a ser enquanto não unirmos em prol do combate não só ao racismo, mas as diferentes formas de opressão que nos assediam diariamente!

Se “13 de maio não é dia de preto”, o dia 20 de novembro é, mas não apenas como forma de lembrar que todos os dias são, e por isso em todos eles devemos ser respeitados, e ter os mais diferentes espaços ocupados dignamente, sejam as ruas, os fóruns, salas de aulas, ou as cozinhas, etc. Que estes, e tantos outros reflitam, de fato, a diversidade que tanto é cantada e folclorizada! Que nos unamos contra todas as expressões de opressão e não nos mover apenas quando aquilo nos doer diretamente!

Você pode não sentir na pele o que é ser negro ou negra, assim como eu não sinto em meu corpo e alma o que é ser mulher, mas podemos nos unir e resistir, na construção de um exercício crítico de empatia!

Mahin
zumbi 3

Gilson Rodrigues Jr

Bacharel em Ciências Sociais (UFRN) e antropólogo - mestre e doutorando pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi professor substituto da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde permanece ministrando aulas no curso de Ciências Sociais (EAD). Tem experiência nos seguintes temas: desigualdades, marcadores sociais da diferença; remanescentes de quilombo e antropologia do direito/ jurídica. Atualmente se dedica a estudar no processo de doutoramento a interface entre ações humanitárias, Estado e religião,

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