Rio Grande do Norte, quinta-feira, 25 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 3 de março de 2016

A pluralidade de crenças e os fanatismos cotidianos

postado por Carta Potiguar

Por Leandro Fernandes

(Professor de Filosofia IFRN)

israel-conexaoisrael-fanatismoSegundo os dados do último censo (2010) feito pelo IBGE, sobre a credulidade e pratica religiosa dos brasileiros, temos no Brasil a seguinte porcentagem: 64,6% católicos, 22,2% evangélicos, 2% espiritas, 0,3% umbanda e candomblé, 2,7% outras religiosidades, e 8% sem religião. Esse cenário diverso de convivência, que não é novidade para ninguém, e que, sobre ele, desde muito cedo se incutiu em nossas cabeças, a imagem e a ideia, da existência de uma extraordinária harmonia no Brasil entre nossos costumes e crenças tão variadas. Hoje, não parece tão fácil fazer/aceitar essa afirmação, porque não é preciso que se tenha o olhar profundo de um estudioso para que se possa enxergar, no contexto atual, a efervescência de atitudes intolerantes, que além da religião, perpassam variados níveis da nossa cultura.

São inúmeros os exemplos da atualidade que podemos invocar, dentre os quais ficaremos com alguns de grande repercussão, como o da menina Kayllane Campos, de 11 anos, atingida por uma pedra na cabeça, na saída de uma cerimônia de candomblé, pratica religiosa de sua família. No Rio de Janeiro um adolescente de 13 anos invadiu uma igreja e atacou várias imagens sacras da Catedral de Santo Antônio, destruindo parte do acervo. Esses comportamentos pervertidos, e pervertido nos parece ser uma boa palavra para definir esses comportamentos, posto que tais atitudes, tal como o significado da palavra pervertido, deprava, corrompe, deforma uma situação de convivência, que mesmo que seja apenas ideal, não deixa de ser desejada, entre pontos de vista e práticas diferentes.

E nesse ponto é preciso repetir sempre que convivência não é o mesmo que concordância, não é a anulação do que se pensa, mas a compreensão de que aquilo que chamamos Verdade, assim com “V” maiúsculo, não pode ser tratado como um dado absoluto, que nega completamente a importância do outro, assumindo que não há absolutamente nada a aprender com ele. Não é preciso concordar com alguém para conviver com ele, na realidade a própria condição para que cheguemos a discordar de alguém é a conivência com este. É nessa situação em que nos encontramos, do exato momento em que acordamos até o momento em que vamos dormir, imersos na convivência; com a crença política diferente, com a religião diferente, com a sexualidade diferente, etc. diferente de tudo aquilo que um determinado ponto de vista considera “normal”. Não precisamos concordar com tudo, mas precisamos urgentemente tentar responder as seguintes questões: de que modo queremos conviver? E (talvez a mais importante) de quais formas podemos discordar?

O fanático menospreza aquilo no qual os outros creem, porque não tem a capacidade, nem o interesse (pois não enxerga nisso qualquer vantagem) de criticar a si mesmo, por isso frequentemente pensa, e age como se não possuísse defeitos, está blindado a crítica porque pensa que não há como ele estar errado. Agindo assim, se coloca acima de todas as outras pessoas, e o próximo passo, para ele, é criticá-las imaginando-se superior a elas.

Como nos ensina Abbagnano, fanatismo vem do latim fanaticus, compreendido como uma forma de delírio[1] “palavra […] empregada a partir do séc. XVIII […] para indicar o estado de exaltação de quem se crê possuído por Deus e, portanto, imune ao erro e ao mal”. Assim, designamos fanatismo como “a certeza de quem fala em nome de um princípio absoluto e, portanto, pretende que suas palavras também sejam absolutas”. Devemos observar a presença da palavra delírio ressaltada no significado de fanático por Abbagnano. Trata-se, portanto, de alguém que, tal como ocorre no delírio, afasta-se do mundo real, tornando-se cego para o que está se passando ao seu redor. Cego pelo menos em dois pontos, 1º da pluralidade humana, de crenças e costumes, e 2º cego para qualquer dialogo que possa ocorrer entre ele e essa pluralidade que o cerca. O fanático não admite críticas, portanto, não critica a si mesmo. Acha que o seu ponto de vista está completo e já não há mais nada a acrescentar a ele, por isso mesmo, em seu modo pervertido de ver, não se trata de um ponto de vista, perspectiva em meio a outras, que junto delas propõe um debate, é “O ponto” de vista, o mais certo que existe. Daí a sua recusa em ouvir a voz e o argumento dos outros, a menos que esse outro esteja a repetir tudo aquilo que ele já disse, concorda e acredita.

Karl Jaspers, filósofo e psiquiatra alemão, numa de suas belas frases, nos fala de uma palavra que, assim como acontece com a palavra diálogo, é oposta a palavra fanatismo, trata-se da palavra humildade, tão fora de moda, diga-se de passagem. Ela diz: “Há, então, na pesquisa filosófica uma humildade autentica que se opõe ao orgulhoso dogmatismo[2] do fanático: o fanático está certo de possuir a verdade. Assim sendo, ele não tem mais necessidade de pesquisar e sucumbe a tentação de impor sua verdade a outrem. A humildade filosófica consiste em dizer que a verdade não pertence mais a mim que a ti, mas que ela está diante de nós”. [3]

O fenômeno do fanatismo, ao nosso ver, possui esse elemento íntimo, a compreensão de uma crença particular como sendo absoluta, e a blindagem ao aprendizado obtido por meio da alteridade. É com essa efervescência que estamos convivendo atualmente no Brasil, e ela não está restrita aos templos e igrejas. É mesmo uma disposição humana que surge em qualquer contexto, na Universidade surge mesclada, camuflada de sofisticados argumentos, e na nossa rua, ou durante qualquer protesto, se mostra nas explosões de emotividade e agressividade que se apossa das pessoas. É, pois um perigo presente e continuo, e que por isso mesmo deve ser tratado como tal e refletido sempre; porque não é só o outro que frequentemente se torna fanático, mas nós mesmos em relação às nossas crenças. Daí a vital importância da palavra e da atitude crítica, nesse tempo conturbado. Crítica que não pode ser praticada pela metade, pois não teria grandes chances de desvio da atitude fanática, isto é, porque continuaria sendo direcionada ao outro, que é sempre o errado da história, e nunca na direção de nós mesmos. É preciso, então, desviar o foco dessa crítica, dividi-lo, estabelecer uma atitude crítica completa, que para ser completa necessita também ser autocrítica. Talvez, e confiamos nisso, fosse essa a via para esfriarmos essa brasa ardente de intolerância que temos visto crescer. Seria também um pequeno preço para uma humildade maior.

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[1] Dicionário básico de filosofia, Rio de Janeiro, 2006, Zahar, p. 106.

[2] Dogmatismo vem da palavra dogma que significa uma opinião que é transmitida de modo impositivo sem que se possa contestar. [2] MARCONDES, Danilo. JAPIASSÚ, Hilton. Dicionário básico de filosofia, Rio de Janeiro, 2006, Zahar, p. 78.

[3] HUISMAN, Denis; VERGEZ, A. A ação. 2. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1996. v. 1, p. 24.

Carta Potiguar

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