Rio Grande do Norte, quarta-feira, 24 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 9 de abril de 2016

Baldur’s Gate e a agenda política conservadora

postado por Loa Antunes

Baldur’s Gate, tradicional game eletrônico de fantasia medieval baseado no aclamado RPG Dungeons & Dragons, introduziu rapidamente uma personagem transexual na sua mais recente expansão, “Siege of Dragonspear”. Mizhena é uma personagem não-jogável e, quando questionada sobre seu nome incomum, responde “Eu criei este nome há muitos anos”, e continua “Meu nome de nascença provou-se inadequado.”

Num cenário onde magia coexiste com dragões e goblins uma adequação de genitália ou performance de gênero não deveria parecer absurdo, bastaria talvez encontrar o último ingrediente mágico numa masmorra entupida de monstros para completar o ritual de transição. Não foi essa a visão de parte dos gamers, que passaram a criticar o jogo por causa da personagem transexual, acusando-o, dentre outras coisas, de adotar uma “agenda política”.

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O game passou a receber – em protesto – uma série de notas baixas em sites de crítica especializada. As críticas suaves à respeito da personagem se centraram principalmente em dois pontos 1. Que esse tipo de personalidade não se encaixa no cenário e proposta da fantasia medieval, 2. Que há uma “doutrinação ideológica”, uma “agenda política” nos “enfiando goela abaixo” personagens LGBT, mesmo que “não tenham nada a ver” com um gênero ou a narrativa. Tratarei destes dois e, no fim do artigo, daquela que me pareceu uma crítica melhor.

#1 Os gêneros cinematográficos e literários não são estanques nem têm compromisso com lei, rei ou fé. Se até então a fantasia medieval clássica não retratou as transexualidades foi devido a esse gênero ser tradicionalmente escrito por homens cis e heterossexuais, compromissados com seus próprios assuntos e demandas. Embora, certamente, existiram sufocadas pessoas trans na Europa medieval, bem como nos diversos tempos históricos e culturas humanas. Se a fantasia medieval (normalmente Tolkeniana, como Baldur’s Gate) habitualmente não retratou esse tema não foi porque a heterossexualidade e a conformação ao sexo/gênero imposto são naturais e eternos, brilhando únicas no medievo e só recentemente maculados por essa gente esquisita.

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Não existe nenhuma dissonância em se ter a biografia de uma personagem trans num cenário onde os debates antropológicos estão sempre tão em voga: choques culturais e étnico-raciais aos magotes, conflitos políticos interraciais, contendas entre estranhas religiões… Falar de uma personagem transexual num mundo onde deuses e religiões dominam, os sistemas políticos totalitários vicejam e um carnaval de raças não-humanas desfila é perfeitamente plausível e rende bons frutos – George Martin lucrou com coisa parecida. O gênero fantástico e seus subgêneros se ocupa(ra)m demasiado do etnocentrismo, colonialismo, das relações sociais entre diferentes culturas e raças, tanto na fantasia medieval quanto na ficção científica (o robô que se enxerga humano, o reinado ameaçado por um exótico país estrangeiro…). Assim, a personagem Mizhena nada tem de alienígena àquele universo.

#2 Tornou-se comum o uso do termo “ideologia de gênero” para definir a contracultura ou o resultado de pesquisas históricas, sociológicas, antropológicas, filosóficas a respeito da assimetria de poderes entre homens e mulheres e da heterossexualidade obrigatória como um sistema político, dentre outros temas, aglutinados nos chamados “estudos de gênero”. A utilização depreciativa do termo ideologia para definir a materialidade dessas pesquisas (o fato de que as relações de poder entre homens e mulheres, por exemplo, se transformam ao longo da História e das culturas ou de que o feminicídio operando no Brasil não é natural) vem sendo praticada por religiosos e conservadores a fim de – como sempre – ocultar e inverter o real, “como numa câmara clara”.

Ideologia pode ser entendida como uma ideia “inversora” do real, um discurso que descreve a sociedade ou a natureza de ponta-cabeça: aquilo que é criação humana (a igreja de Paulo, por exemplo) passa a ser a criação de Deus, o que é construto histórico (relações de poder entre sexos/gêneros e sexualidades), passa a ser visto como eterno, o que é contingente (a heterossexualidade obrigatória, uma religião qualquer…) é narrada como necessária à existência. Essas ideias medram na religião e no conservadorismo a despeito das pesquisas históricas e arqueológicas denunciando que nenhum arranjo social é necessário, eterno, imutável, divino… coitados.

Dessa forma, “doutrinação ideológica” é exatamente aquilo que as igrejas e outras instituições conservadoras fazem com suas crianças, batizando-as antes mesmo de saberem falar e compreender a crença em que estão sendo afogadas, muito cedo ensinando-as que Deus fez o homem e a mulher, e não que a reprodução das espécies é um mero produto de uma evolução desprovida de sentido ou inteligência “superior”, anunciando o gênero dos sujeitos antes mesmo que eles possam dizer, por si, como se sentem, inventando uma mitologia infernal para condenar tudo que não for heterossexual ou o sexo permitido, mesmo hétero… e uma série de outras doutrinações que as Igrejas cristãs, atuantes principalmente no Ocidente, vêm fazendo desde que ganharam poder suficiente para isso.

Assim, a introdução de personagens LGBT, antes marginalizados, interditos, ocultos pelos autores clássicos, nas histórias recentes nada tem de doutrinação ideológica se não da produção de um outra narrativa que não é aquela da ideologia cristã e conservadora dominante. O que veio goela abaixo de tantos não-heterossexuais e sujeitos trans foi exatamente a ideologia religiosa cristã e conservadora, com sua hegemonia de personagens cis.
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A heterossexualidade obrigatória, a compulsoriedade em seguir o gênero de acordo com sua genitália, como entendida socialmente, o apagamento de todo o Outro não-hétero e não-cis/binário é que constituiu uma importante agenda política dos cristianismos e conservadorismos desde que se tornaram religião e ideologia poderosas a ponto de perseguir e fazer valer sua fé pela força ou pelo apagamento, pela exclusão da História e das estórias. O controle dos corpos e das sexualidades, dos fluidos corporais e dos prazeres, das performances e indumentárias, das psicologias, a criação de uma maquinaria de controle e conhecimento sobre como se transa e se goza, onde se coloca as mãos e as bocas, estas sim, têm sido uma poderosa agenda ideológica cristã-conservadora só minada pelo estabelecimento de direitos alheios à religião, muito recentemente. O que as ciências fazem não é a ideologia, essa ideia inversora, mas justamente desinverter ou desencantar o sortilégio que as ideologias religiosas e conservadoras, por tanto tempo, vêm praticando para ganhar dinheiro e poder, e dominar.

A heterossexualidade e a cisgeneridade obrigatória, por meio da remoção e apagamento de tudo que não for elas mesmas dos romances, novelas, contos, games e demais narrativas quer nos fazer crer que não se constituem em agendas políticas, que são totais, gerais, naturais, que o político é o alheio a essas instituições, o diferente. Quando acusam personagens LGBT ou roteiristas de agirem em nome de uma “agenda política” esquecem das estratégias adotadas pela heterossexualidade compulsória: excluindo LGBT, matando-os, privando-os de liberdade, de sexualidade, de afetos, de serem personagens em estórias… enfim, da existência. Não existe nada de natural em só haver héteros ou pessoas cisgêneros em contos, filmes ou games, se a fantasia medieval clássica assim o é trata-se do produto de uma agenda política à míngua.

***

Finalmente, as críticas mais interessantes parecem ter vindo de pessoas trans, que acusaram o game – por causa da personagem ser não-jogável e ter poucas falas – de usar o tema como recurso para criar polêmica e vender mais. É possível que isso seja verdade. Uma das roteiristas respondeu às críticas da seguinte forma: “Eu não gosto de escrever apenas sobre pessoas hétero/brancas/cis o tempo todo. Não é para refletir o mundo real, onde adota-se como normal o padrão hétero/branco/cis e todas as demais opções são interpretadas como ‘o outro’. Esse padrão é chato.”

Mesmo que nenhum escritor seja obrigado a nada, podemos no entanto questionar a parca aparição da personagem e a razão dela não ser mais importante para a narrativa do game. Talvez seja o caso de, numa futura edição, haver mais o que falar e jogar a seu respeito, para delírio de quem quer crer que o mundo se faz só de cisgêneros.

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Loa Antunes

Doutorando em Ciências Sociais (Ciência Política) — UFRN Policial Militar — PM-RN. Cientista social.

6 Responses

  1. Deickson disse:

    Brilhante reflexão sobre representatividade e a atual inversão do conceito de ideologia. Parabéns pelo texto, amigo!

  2. Excelente artigo meu amigo, parabéns!

  3. Tiago Bastos disse:

    cara adorei seu post, meus parabéns!

  4. Concordo com tudo o que disse eu seu artigo Loa, parabéns muito bem escrito.

  5. Joguei muito este jogo no passado mas hoje não me agrada mais, não sei porque, mas eu achava bem legal.

  6. muito bom este post! parabens loa antunes!

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