Rio Grande do Norte, quinta-feira, 28 de março de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 26 de julho de 2016

Amor velho e grande

postado por Beatriz Madruga

Vi o amor velho hoje.

Vi o amor velho dobrando a esquina, virando a rua, entrando na avenida. No meio da tarde, mentira, no meio da manhã, é que fiz os mesmos caminhos hoje manhã e tarde. Os dois idosos no carro, os dois cabelos brancos, as duas cabeças brancas, ele dirigia e ela no banco do passageiro. Ele recostou-se completamente no banco do passageiro enquanto ela olhava a avenida para dizer “agora pode ir”.

Ele esperava.

Ela também.

Os carros passavam em sendo muitos, com velocidade também, eles esperavam, ele mais que ela, ele sem olhar se os carros vinham mesmo, só recostado no banco, lá atrás, completamente lá atrás, confiando em absoluto nos olhos que ela emprestava a ele.

E pensei no amor velho que é uma companhia grande também e faz assim: feito um corpo só, um faz metade da tarefa e o outro a outra metade. Deixa que eu olho enquanto você segura o carro e acelera depois. E confia. E espera. E fiquei pensando se os dois vão sempre assim, no trânsito fora do trânsito em casa fora de casa: cada um dos dois sendo parte de um todo de um só, de um único, sem pressa nem raiva, com paciência esperando por sua vez.

kk

Meus avós conservavam uns rituais assim. Todas as tardes, meu avô passava pelo corredor e sentava na cabeceira da mesa. Afastava a cadeira, erguia o queixo deixando pender a cabeça pra trás e se preparava para abrir bem os olhos. Minha avó já estava perto com o colírio. Ele com os olhos, ela com as pernas rápidas e os movimentos certos, prontos.

Penso se eu vá ser assim um dia, se vamos ser assim um dia, se ainda somos capazes. Se nos haverá tanta calma e tanta confiança assim, daqui com o passar dos anos, se ainda temos alguma destas, na verdade, se estamos dispostos a ser somente parte de um todo, e não o todo, sempre o todo, o corpo inteiro e a decisão por si, como já temos sido. Penso se conseguiremos ser menos que um sozinho, para que sejamos sempre soma com outro; se as gentes que vivem por esses dias sabem o que isso significa e sabem ser menos que uma vida sozinha – mas parte de uma vida a dois, mais plena e de marés secas, de carros no freio, aceleração demorada, correria passando por nossa vista, enquanto a gente, menos que um, espera passar tudo isso.

Pra seguir depois, os dois nós dois, no final, atrás de todos, mas juntos, sendo um. Sendo sempre só um.

Beatriz Madruga

Bia formou-se em Psicologia, mas até hoje não sabe por quê. É estudante de Letras. Prefere ler e escrever a conversar. Em 2015, publicou "Aos Pedaços, Com Tudo" pela Jovens Escribas.

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