Rio Grande do Norte, sábado, 20 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 1 de outubro de 2016

Enegrecer o feminismo e ampliar a cidadania

postado por Andressa Morais

É fato que uma parcela significativa da população brasileira, especialmente mulheres negras, sem excluir homens negros e mulheres e homens indígenas, é subrrepresentada politicamente em relação ao peso que têm na população total, isto é, há uma pequena representatividade desses segmentos no campo político brasileiro. Na Câmara Municipal, por exemplo, nunca elegemos uma vereadora negra e na Câmara Federal somente 2,2% das deputadas são negras. A importância da representatividade da mulher negra está inscrita na diversidade de experiências e visões sobre o mundo como fundamental na construção de um espaço político mais democrático, pois são olhares que podem espelhar a outras/os negras/os novas aspirações e dizer “sim! você pode chegar lá”. Por isso, representatividade negra tem a ver com reconhecimento de trajetórias do lugar de onde falamos.

meritocracia1-2As principais vítimas da violência doméstica e de violência letal são as mulheres negras, cujo índice de homicídios entre cresceu 54,2% entre 2003 e 2013, enquanto que entre as mulheres brancas este índice caiu 9,2% (1). Além disso, as mulheres negras representam 68% das mulheres encarceradas no país (2). O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), por sua vez, informa que as mulheres negras recebem, em média, 40% da remuneração dos homens brancos (3). Isto significa que as mulheres negras são as mais vulnerabilizadas pelas desigualdades sociais.

Na reta final de campanha eleitoral de 2016, onde o marketing corre solto, algumas situações estruturais de reprodução dessas assimetrias aparecem com maior vigor e embaçam nossa visão sobre o fenômeno da desigualdade racial e gênero na vida pública. Por isso, convém desenvolver uma reflexão crítica a respeito das condições de inserção da mulher negra na esfera da vontade democrática brasileira.

As lutas das mulheres pelo direito de participação na esfera da formação da vontade democrática

 racismo-1A luta de mulheres por participação na política e na vida pública tem uma longa trajetória no Brasil e no mundo. Nas primeiras décadas do século XX é quando as mulheres conquistam o direito ao voto; mas não é para todas, somente para mulheres casadas e com a autorização do marido, viúvas e solteiras com renda própria.

Em âmbito estadual, o Rio Grande Norte protagonizou dois importantes marcos na história política democrática, a saber,a primeira mulher a garantir o direito de votar – a professora Celina Guimarães Viana (4) por ser a primeira mulher inscrita na lista de eleitores votantes no município de Mossoró em 1927,antes do decreto 21.076 do Código Eleitoral Provisório de 1932 -e a primeira prefeita eleita no Brasil, Alzira Soriano, no município de Lages em 1929 (5). Nosso código eleitoral estadual foi pioneiro inclusive ao colocar em vigor que exigidas às condições da lei todas e todos poderiam “votar e ser votados, sem distinção de sexos” – curiosamente ambas eram mulheres brancas e de classe abastada (autorizadas por seus maridos). Nesse contexto, mesmo após a abolição da escravatura,as mulheres negras pouco se beneficiaram dessa lei, porém é curioso o registro da professora Antonieta de Barros como a primeira mulher negra eleita como deputada na Assembleia Legislativa de Santa Catarina para o exercício de 1934-1937.

Interessante reconstruir historicamente os marcos institucionais, pois eles dizem muito sobre a seletividade e os potencias bloqueios para o exercício pleno dos direitos políticos de mulheres e da participação política das mulheres negras. Somente em 1970 organizações de mulheres negras provocam a afirmação da identidade negra, crucial para a consolidação da luta por direitos sociais e políticos dessas mulheres.

Considerando que a população negra representa mais de 50% da população total, o déficit de participação política das mulheres negras é muito aquém do proporcionalmente relevante, isto é, estamos longe de termos uma representação condizente com nosso perfil na vida política, predominantemente branca e de classe abastada.

Note-se que no quadro geral de ocupação da esfera pública institucional contemporânea a mulher negra fica de fora, está subrrepresentada em praticamente todas as escalas de poder e decisão (6). Não obstante, o contexto político atual é icônico e sem dúvida se beneficia de candidaturas genéricas e sem efeitos políticos reais sobre situações de baixa representatividade de uma boa parcela da população nas quais as sensibilidades históricas foram retiradas e não chegam à vida pública para serem tratadas de modo eticamente construtivo.

A inquietação a estes processos eleitorais que forjam candidatas/os com as pautas de movimentos sociais emerge da insatisfação diante de uma análise interseccional e globalizada sobre o lugar social de mulheres negras. Portanto, não parece justo e também não parece ético que a luta antirracista e a luta por reconhecimento deste segmento da população seja espelhada de forma parcial com candidaturas que se dizem sensíveis ao corte étnico-racial, mas que se esquecem de refletir sobre as distâncias sociais que se colocam no dia a dia de mulheres e homens negras/os e etnicamente autoafirmados.

Inteseccionalidade na política brasileira

Pensando sobre as próximas eleições, assinalo alguns aspectos que me parecem pertinentes para fazer uma avaliação adequada e elucidativa sobre“feminismos e política” e sobre o comprometimento com as pautas que estão sendo apresentadas por candidatas/os.

Primeiramente, existe candidata/o de legião da boa vontade, apostando numa caricatura política de que não precisa do dinheiro e que está se candidatando porque é comprometida/o com a política local, portanto jamais roubaria.Ao insinuar que irá fazer voto de pobreza, sendo rica/o e herdeira/o de nome e sobrenome político de oligarquia do estado e de estados vizinhos(vindo construir sua carreira política aqui no RN) mostra o preconceito velado para com quem é pobre. São dois preconceitos que estão inscritos nesse tipo de postura, a saber, o primeiro é o lugar do colonialismo que se coloca como “vou fazer o bem para todas/os” e o segundo é a reificação do pobre como corrupto, assim o fato de “já é rica/o não precisa disso para viver” ou que está“vacinada/o ou isenta/o”do bichinho corrupção parece uma forma bastante violenta de reproduzir hierarquia valorativa e desqualificação social. Se considerarmos que os colonizadores também apregoavam a máxima do “em nome da boa vontade para levar civilização e progresso” estamos diante de uma má fé política e de um racismo de classe e raça descarados. Não nos custa lembrar que esse tipo de boa vontade responde apenas aos seus interesses pessoais, portanto acho válido intervir sobre essa proposição política de má fé que apareceu na esfera pública local.

O segundo aspecto que permite uma avaliação adequada sobre a relação entre feminismo e política refere-se à subrrepresentação da mulher negra. Destaco que não basta eleger uma/um candidata/o branca/o com “sensibilidade” para as questões que nos envolve enquanto mulheres negras.

Isto nos leva com facilidade a um paradoxo curioso: a opção de ter “alguém que fale por” em razão de ter “alguém que fale com”, entendendo que “alguém que fale com” fala antes de tudo sobre o seu próprio lugar de origem e sobre os marcadores sociais da diferença que estão o tempo todo reproduzindo violências sobre nós. Com efeito, ao colocar a mulher branca como representante do lugar de fala das mulheres negras, corremos sempre o risco de estarmos simplesmente reproduzindo o caráter colonialista e o corte de classe e raça, sem ruptura nenhuma com este tipo de assimetria.

filme-1Nesse sentido, é muito diferente ter mulheres negras, dos movimentos sociais, da periferia e da classe trabalhadora na esfera pública de formação da vontade democrática. Afinal, são pessoas que lidam diariamente com o racismo, o sexismo e a luta de classes em todas as esferas e domínios de sua vida, o que remete diretamente a pertinência do que eu estou chamando de “política de interseccionalidade”.

A interseccionalidade é uma categoria relevante para adensar nossa compreensão sobre a relação entre as diversas assimetrias, entendendo que a dominação, as discriminações e as opressões estão relacionadas. Desse modo, as mulheres negras são vítimas de tripla opressão: de raça, gênero e classe. Na perspectiva interseccional não é prudente enfatizar somente a classe ou o corte de gênero, por isso o feminismo negro se pensa em totalidade e entende que classe é informada tanto por gênero quanto por raça/etnia, são formas de dominação interseccionadas que marcam socialmente diferenças e produzem desigualdades sobre as mulheres negras.

A política como palco da indústria cultural de hoje

Muitas campanhas surgem baseadas em contextos de ocasião e incorporam as demandas de movimentos sociais somente como perfumaria, este é o problema da indústria cultural, ela pode nos levar a cometer injustiças com as trajetórias de gente que pisa no chão e está na vida pública trabalhando e lutando contra as desigualdades sociais diariamente.

O poder da indústria cultural pode produzir distorções e nos levar ao que aparece como o mais “legal”, sem considerar que o mais legal pode ser um jogo, uma camisa, um boné ou uma bandeirola em contextos de escolhas do mercado e não como definidor na escolha dentro do Estado Democrático e da representação política. Nesse sentido, não basta ser “legal” tem que Ser, no sentido de existir no engajamento, na solidariedade, no respeito mútuo, no comprometimento com a coisa pública,na sororidade, na empatia e no companheirismo, como uma atitude de empoderamento, isto é, de promover a participação de quem está fora desses espaços a fim de romper com a dependência e com a dominação política de grupos subalternizados.

O lugar de fala é fundamental nesse processo e saber diferenciar o que tem lastro do oportunismo eleitoral é vital para nós todas/os. Assim, aquelas e aqueles que buscam através do voto qualificar suas escolhas eleitorais, lembrem-se de que devemos estar alinhadas/os com aqueles projetos verdadeiramente construídos com o pé no chão, o olho no olho e na horizontalidade, requer uma trajetória inteira de atuação na vida pública e isso pode nos dizer sobre o lugar social de uma candidata/o e o quanto ela/ele está realmente motivada/o por fazer justiça social e lutar contra as assimetrias.

Que emancipação a gente busca? Uma emancipação de mudanças ou uma emancipação apenas para um grupo específico que mantém a reprodução de estrutural? Falar de democracia é falar sobre dignidade, respeito, direitos e opressões. Um país como nosso, de maioria negra, não pode se dar ao luxo de não pensar sobre a perspectiva racial como prioritária. Nesse sentido, a cidadania das mulheres negras passa também pela ampliação de participação na esfera política, de se fazer presente nos espaços de deliberação e formação da vontade pública do estado democrático de direito.  Assim como a crescente inserção das mulheres na esfera pública tornou possível a politização de suas demandas de reconhecimento, a inserção das mulheres negras coloca em debate público o lugar social que estas ocupam no sistema de estratificação da sociedade brasileira, qual seja, o de pior ponto de partida na escala de assimetrias.

Considerando o que foi dito acima, as diferenças são marcadores de desigualdades e no caso específico das mulheres negras, qualquer uma/um de nós que pense a desigualdade precisa pensar a partir do nexo entre gênero, raça e classe social. Há distâncias atlânticas nisso! E o desdobramento ético de uma escolha como essa pode ser emancipatório. Ainda são muitos os desafios para superarmos tais assimetrias e conseguirmos celebrar mudanças profundas da participação de mulheres negras nos pleitos e nos espaços de poder e deliberação. No meio da luta contra as opressões e pela construção de uma vida pública plural, que respeite a diversidade e que se pense equânime, encontrar candidatas/os negras e outras populações subalternizadas, comprometidas com a mudança social e política e com grande potencial de articulação é um sopro de re-existência e pode nos conduzir a novos patamares na política local.

 

1 (http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2015_mulheres.php)

2 (http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80853-populacao-carceraria-feminina-aumentou-567-em-15-anos-no-brasil)

3 (http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=20978)

4 (http://www.brasil.gov.br/old/copy_of_imagens/sobre/cidadania/especial-eleicoes-2010/galeria-de-historia/celina-guimaraes/view)

5 (http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2013/Marco/semana-da-mulher-primeira-prefeita-eleita-no-brasil-foi-a-potiguar-alzira-solano)

6 (http://www.inesc.org.br/noticias/biblioteca/textos/inesc-lanca-o-perfil-dos-candidatos-as-eleicoes-2014-em-seminario-na-proxima-sexta-19-9).

 

 

 

 

 

 

 

Andressa Morais

Antropóloga. Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Mestra Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Interesses nos seguintes temas: movimentos sociais, gênero, feminismo, raça, direito, sentidos de justiça e interseccionalidade.

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