Rio Grande do Norte, quarta-feira, 24 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 19 de novembro de 2016

A prisão de Garotinho e o suplício midiático

postado por Alyson Freire

damiens2Na abertura de Vigiar e Punir, o filósofo francês Michel Foucault descreve uma terrível cena de punição e castigo conhecida como “suplícios”, cerimônias públicas e solenes de tortura que existiram nas sociedades ocidentais até meados do século XVIII. No livro, trata-se do esquartejamento público de um indivíduo chamado Damiens, condenado por parricídio. Damiens foi atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas com chumbo derretido e óleo fervente. Sob os olhos do povo, e gritos de dor, blasfêmias e pedidos desesperado de clemência, o seu corpo sofreu e padeceu horrendamente até ser desmembrado por cavalos e seus membros destroçados atirados ao fogo.

Se após o surgimento da prisão, os suplícios e as penas físicas saem de cena, e passam a habitar nas sombras dos interiores dos presídios, delegacias e casas de detenção, podemos dizer que, nas sociedades midiáticas e da imagem do século XXI, os suplícios retornam ao palco principal do teatro dos castigos humanos. Ganharam novas roupagens, obviamente, mais adequadas a um mundo moldado por tecnologias de informação e comunicação que transformaram radicalmente a nossa experiência do tempo e do espaço. Contudo, tal como antes, os suplícios contemporâneos revelam uma economia do poder e, também, importante destacar, o modo pelo qual nos relacionamos contemporaneamente com a dor e o sofrimento do outro.

As prisões de Sérgio Cabral e Garotinho são um farto e mais recente exemplo do que poderíamos chamar de “suplícios midiáticos”, uma prática de poder ao mesmo tempo punitiva e de entretenimento (vide os reality shows ao estilo Big Brother) característica da nossa sociedade do espetáculo, para retomar o conceito de Guy Debord. Ao acompanhar na noite de ontem (sexta-feira, 18/11) a cobertura midiática desses casos, a descrição foucaultiana da tortura pública de Damiens e toda a racionalidade sociológica que sustenta a tecnologia de poder dos suplícios vieram-me  inevitavelmente à mente. Fotos, áudios, vídeos e reportagens sobre os momentos mais aflitivos e embaraçosos dos acusados e detidos, assim como de seus familiares, ganharam as redes televisivas e as páginas da internet. Um verdadeiro espetáculo montando em cima do sofrimento, desespero e da derrota alheia foi produzido e reproduzido, e colocado à disposição de todos. Não é mero sensacionalismo o que temos aqui. Trata-se de algo bem mais profundo. O riso de canto de boca do apresentador (William Wack) ao finalizar o último jornal do dia com o vídeo do desespero do Garotinho e de sua família revela, na verdade, mais do que uma falta de empatia mínima; exprime uma forma coletiva e simbólica de castigo e satisfação da qual não podemos prescindir de pensar criticamente.

Em um dos vídeos, amplamente divulgado e retransmitido pelos jornais, vemos um homem quase desnudo sob um lençol entrando na ambulância. Em meio aos gritos sôfregos e protestos da filha e da esposa, ele tenta resistir e se levantar inutilmente contra a força dos agentes policiais encarregados de leva-lo para o presídio. Não há nessa cena nada de interesse público, no sentido pleno e forte do termo, nada que edifique ou digno de comunicação para o esclarecimento de uma sociedade civilizada, mas apenas o sofrimento sincero e legítimo de uma família e o medo de uma pessoa. Sua responsabilidade e culpabilidade perante os crimes dos quais é acusado não autoriza nem justifica a exposição e reprodução pública de uma situação privada constrangedora, que diz respeito unicamente à família. Deveríamos enxergar ali, não o político, o criminoso, o corrupto, senão um homem gordo e debilitado e os seus parentes comovidos com o seu destino e estado. É um limite de civilidade e respeito a princípios de privacidade e dignidade humana.

Se não é apenas sensacionalismo, insensibilidade ou incivilidade diante da dor do outro, mas um suplício, portanto, uma forma de punição e castigo, quais são os significados de expor publicamente a alguém a esse ponto? Ora, trata-se de uma forma sublimada de suplício de alguém tomado, a um só tempo, como objeto para a manifestação de uma forma de poder e bode expiatório dos pecados da comunidade. Sublimada porque o suplício midiático não pode se chocar com o processo civilizatório que produziu na subjetividade moderna uma maior repulsa da violência física, tal como nos mostrou o sociólogo alemão Norbert Elias. Ou seja, como o poder não pode oferecer o corpo do condenado esquartejado, tortura-lo fisicamente, fustiga-lo com brasa, mata-lo, oferece-se, então, a sua vergonha, fraqueza e desespero. Em vez do corpo esquartejado e esmagado pelo poder real, temos o corpo humilhado, derrotado, envergonhado pelo poder dos media.

O poder do suplício midiático é um poder que invade e arranca do corpo humilhado suas emoções privadas, como se dissesse que até a intimidade dos sentimentos do criminoso não pertencem a ele, nem ali ele pode se julgar protegido do poder, nem ao seu mais íntimo ele pode resguardar algum direito. Ataca-o, com efeito, em suas emoções íntimas e expõe as vísceras da família para ridiculariza-las, para tripudiar de sua fraqueza e dor, para rebaixar, desumanizar e esmagar qualquer pretensão de dignidade, destruir sua imagem pública até restar algo simplesmente cinzento e cabisbaixo a que todos possam pisar e zombar sem remorso ou culpa.

Os princípios fundamentais do suplício clássico permanecem. Nos suplícios midiáticos que assistimos, existe umahqdefault cenografia dada pela presença das viaturas, dos policiais armados e uniformizados, enviados pelo rei/magistrado, ostentando símbolos numa grande operação de nome pomposo. As câmeras ligadas e os repórteres são os olhos, ouvidos e a boca do povo, prontos para se regalarem com a humilhação do outro. Simulam sua presença em um ajuntamento virtual de populares prontos para assistir o linchamento. O detido, surpreendido logo cedo, com roupas comuns, segue de cabeça baixa e algemas à mostra, escoltado até a prisão. As imagens, gravações e transmissões multiplicam-se. O suplício do corpo e a exposição do seu sofrimento não se dá na praça central, mas no patíbulo da opinião pública, dos jornais televisivos e dos comentários pejorativos nos sites da internet e redes sociais.

Portanto, temos duas exigências essenciais dos suplícios sendo efetivamente cumpridas: por um lado, a vítima é marcada e tornada infame, indigna e, por outro, o próprio poder se refestela na exibição de sua força, do seu triunfo sendo por isso constatado por todos. O suplício midiático celebra a soberania da visibilidade midiática como poder de criar e destruir imagens públicas e reputações. Em outras palavras, é uma celebração coletiva da submissão de todos, inclusive das instituições de justiça, aos valores da moral do espetáculo.

Essa economia do poder traz à tona também uma função simbólica e perversa mais subterrânea de sua atuação sobre o corpo e a imagem pública do condenado. A exposição da vexação pública, em tempo real ou não, pelos medias incita na comunidade de espectadores uma projeção coletiva de identificação imaginária do supliciado como inimigo social. Em tempos de Lava Jato, o corrupto é o regicida de nossa época. Mais do que um infrator de normas e leis que deve ser punido conforme os limites estabelecidos, e, por conseguinte, privado do convívio social, estamos diante de um inimigo público, de uma ameaça à própria ordem coletiva que precisa ser, antes de mais nada, eliminado moralmente. Porém, não antes de cumprir e servir a um propósito coletivo: ser o bode expiatório da comunidade, uma forma de aliviar os próprios demônios e pecados.

Não me refiro ao falso argumento segundo o qual Garotinho está sentindo o que os pobres e as pessoas de bem sentem e passam todos os dias no Brasil, como se tal despautério, banalizador e naturalizante da subcidadania e da violência social contra os mais pobres, justificassem e autorizassem que outros mais passem o mesmo. Não é essa a satisfação compensatória que está por trás do deleite coletivo dos que vibraram e se regozijaram com o tratamento a ele dado. O gozo sádico e a vingança coletiva não explicam satisfatoriamente o que de fato move as pessoas a se refestelarem na vergonha e dor do inimigo-corrupto. Há em todo esse episódio, ouso dizer, um sentido religioso, uma espécie de transfiguração da culpa coletiva para único membro do corpo social, concebido como o inimigo pleno da sociedade. Os gritos de indignação, os comentários pejorativos e jocosos, as comemorações são, com efeito, uma descarga coletiva de culpas e faltas individuais todas elas, agora, podendo ser “esquecidas”, sublimadas através de uma satisfação imaginária porque a comunidade encontrou um bode expiatório, o inimigo corrupto, que concentra, carrega e unifica todos os nossos pecados dos quais não queremos reconhecer e saber.

A crença de fundo compartilhada, similar ao mito do sacrifício judaico-cristão, é que a humilhação do outro e sua expiação pública e degradante purifica a comunidade, isto é, no caso da corrupção, do inimigo-corrupto, a comunidade dos cidadãos de bem pagadores de impostos autorrepresentada como ordeira e honesta. O sacrifício e linchamento moral do inimigo-corrupto diluem as “pequenas faltas” cotidianas dos cidadãos de bem, quer dizer, as furadas de fila, o suborno para o agente de trânsito, a sonegação de impostos, o autoritarismo familiar, o desrespeito aos direitos dos empregados domésticos, etc.. Assim, a sociedade – e sua hipocrisia compartilhada – podem continuar  como se a corrupção não existisse nela, em suas práticas e rotinas do dia-a-dia, mas apenas num outro fora de nós. Há sempre alguém mais corrupto do que nós, e é ele a origem de todos os males, e, por isso, merece pagar severamente.

Para encerrar, convém insistir, ao criticar o suplício midiático exposto no vídeo da prisão de Garotinho, o que criticamos não é a sua prisão em si nem o comportamento dos agentes policiais. Muito menos se trata de minimizar sua responsabilidade penal. É, antes e fundamentalmente, criticar a cobertura e transmissão da imprensa de uma cena degradante e vexatória, transformando a vergonha e dor alheia em um espetáculo. Algo lamentável e sem nenhuma necessidade e relevância pública. A publicidade do processo penal ou do acusado não legitimam a submissão de qualquer a uma situação humilhante. Como concessionária de serviço público, as redes de televisão, como a TV Globo, deveriam prezar por parâmetros legais e de civilidade, tais como os direitos e garantias da preservação da intimidade, privacidade, dignidade. Afinal, como a reza a Constituição em seu artigo 5°: “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. E por ninguém entende-se, inclusive, acusados e condenados por quaisquer crimes, mesmo os mais hediondos.

O mais trágico e bizarro do episódio da cobertura midiática das prisões de Cabral e Garotinho é que muitos, inclusive, agentes do Estado enxergam nela o exercício de uma pratica de justiça republicana, isto é, que não distingue, que não privilegia, que submete todos à lei, sem seletividade. Se os pobres e desvalidos tem seus direitos sistematicamente violados e ignorados, tratemos, então, todos assim! Raciocínio absurdo que demonstra de maneira crua a naturalização da desigualdade social na sociedade brasileira. Ao prescindir das regras do Estado Democrático de Direito e das normas civilizatórias em relação à dignidade da pessoa humana, e alimentar o apetite irracional por cenas de degradação, dor e humilhação pública de seres humanos, estamos caminhando rumo não apenas para uma sociedade desprovida de sensibilidade diante do outro, mas uma sociedade de justiceiros sádicos e alucinados. O mais inacreditável é que mesmo gente dita comprometida com os Direitos Humanos e de esquerda tomaram o seu assento e se lambuzaram no baquete da vexação moral alheia com sorrisos, piadas e ridicularizações. Quando todo o significado humano do sofrimento é esvaziado, estamos a um passo da barbárie.

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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