Rio Grande do Norte, sábado, 20 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 26 de janeiro de 2017

Entrevista: Sociólogo Alípio DeSousa fala sobre punitivismo

postado por Leonardo Dantas

“Alcaçuz é uma prova do descaso com o qual o Estado brasileiro e nossos governantes, até aqui, têm tratado o assunto do sistema prisional no país”.

Os episódios de barbárie ocorridos nas últimas semanas na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, expuseram a grave situação de caos em que se encontra o sistema penitenciário do país. Falência e abandono das unidades prisionais e o descontrole, por parte do Estado, do crescimento das facções criminosas dentro e fora dos presídios, já eram denunciados pelas páginas policiais. Foram necessárias imagens de corpos desmembrados e carbonizados para que a sociedade atentasse para o caso. Porém, a opinião pública respondeu com mais pedido de violência. O desgastado “bandido bom é bandido morto” ganhou aspectos de selvageria e desumanidade. As redes sociais foram ocupadas com pedidos de “extinção em massa” dos encarcerados e e por postagens de comemoração das mortes. Houve também quem pedisse que o “recorde” de Carandiru fosse quebrado.

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Professor Alípio DeSousa Filho atua no Departamento de Ciências Sociais da UFRN (Foto: Reprodução)

Para o professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Alípio DeSousa Filho, a falência do sistema prisional está totalmente atrelada ao descaso do Estado com a população carcerária e à ideologia punitivista que rege as prisões e permeia a mentalidade dos brasileiros. “Nesse ideal punitivista não se admite que a privação da liberdade seja a punição, que é o que consiste a pena de prisão para a lei. Acham isso muito pouco, afinal, como andam dizendo por aí ocupantes de funções públicas no país, ‘prisão não é hotel’. É necessário a imposição de sofrimento com castigos, violências físicas e psicológicas e destrato de direitos”.

Na ideologia punitivista é necessário a imposição de sofrimento com castigos, violências físicas e psicológicas e destrato de direitos (Foto: Humberto Sales / Photo Press /Folhapress /VICE)

Na ideologia punitivista é necessário a imposição de sofrimento com castigos, violências físicas e psicológicas e destrato de direitos (Foto: Humberto Sales / Photo Press /Folhapress /VICE)

A ideologia punitivista tem sido aplicada no país e tornou-se admitida até por aqueles que ocupam funções de Estado, o que para DeSousa é um “escândalo”, já que não é o que dizem as leis que tratam do assunto das penas de prisão e do sistema prisional.

“Confunde-se, no Brasil, a pena de prisão, com a imposição de sofrimento cruel a pessoas condenadas pela Justiça e conforme leis que não admitem tal ideia. Embora tenhamos também o escândalo de um Judiciário que é cúmplice da permanência de pessoas nos cárceres, por anos seguidos, sem que tenham sido julgadas e recebido penas de prisão”.

Hoje, cerca de 41% da população carcerária são os chamados presos provisórios, ou seja não tiveram ainda suas sentenças definitivas. “Mas, como se sabe, o Estado brasileiro não cumpre as próprias leis que elabora e aprova”, afirma DeSousa.

 

Essa realidade triste nos presídios brasileiros impede a efetivação real da sua missão, que é a ressocialização dos apenados. “Em ambientes assim, o que temos são instituições de produção da degradação de seres humanos. O Estado, seus gestores e bom número de pessoas na sociedade creditam elas como espaços de punição, não de ressocialização. E, de fato, é no que as prisões do país se transformaram: lugares de adoecimento emocional, psíquico, suicídios, sadismos, crueldades, maus-tratos”.

 

A transformação dos presídios em masmorras medievais onde se praticam violências, humilhações, sevícias sexuais, torturas e abusos cometidos em nome da “disciplina”, abriu espaço para práticas de corrupções e chantagens, como explica DeSousa: “Os cárceres brasileiros são locais do ‘salve-se quem puder’, onde se praticam corrupções, chantagens, cooptações por facções do crime, comércio de drogas, alimentação, medicamentos, produtos de higiene, água, fósforos, celulares e armas. Tudo isso como moedas, que podem viabilizar a vida ou a morte, mas igualmente a sobrevivência durante os anos de pena”.

Presídio Central em Porto Alegre (Foto: Blog Ação Preventiva)

Presídio Central em Porto Alegre (Foto: Blog Ação Preventiva)

O modelo punitivista no Brasil pode ter raízes no imaginário escravocratas, como lembra DeSousa, onde os escravos eram submetidos a castigos cruéis cada vez que desobedecessem a seus senhores e senhoras. “Um bom número daqueles que caem em desgraça na atividade criminal no nosso país são negros e filhos da pobreza, talvez ainda se veja neles os escravos de outrora que se permitiu violentar, agredir, humilhar da maneira como sabemos pela história” explica.

 

Para o cientista social, nem mesmo a atual onda direitista e fascista que cresce no Brasil e no mundo pode ser responsável pelo sentimento de vingança e punição contra os apenados. “A mentalidade social autoritária impera na sociedade brasileira desde seu começo. A ideia de tratar “bandido” como a figura do “homo sacer” (aquele sem nenhum direito; na Roma antiga, nem mesmo seu assassinato era crime, como comenta o assunto o filósofo italiano Giogio Agamben, que escreve para falar dos “homo sacer” de nossos dias) no Brasil é muito anterior a atual conjuntura e ao momento social que vivemos no qual domina o pânico social com relação ao que a opinião popular e as mídias chamam “aumento da violência”.

Cerca de 41% da população carcerária são os chamados presos provisórios. (Foto: Reprodução)

Cerca de 41% da população carcerária são os chamados presos provisórios. (Foto: Reprodução)

DeSousa ainda complementa que a violência no Brasil é uma constante e sempre esteve presente, mas o que tem acontecido é uma espetacularização. “Sempre fomos profundamente violentos. Podemos dizer que aumentaram assaltos, roubos e possivelmente até mais assassinatos. Mas a violência social está para além disso. Não está escrita a violência de nossa sociedade contra as mulheres, gays, lésbicas, transexuais, negros e os mais pobres. E violência que não se resume ao preconceito e à discriminação, como se sabe”.

 

 

Espetacularização da violência cria impressão de aumento da violência. (Foto: Reprodução TV Ponta Negra)

Espetacularização da violência cria impressão de aumento da violência. (Foto: Reprodução TV Ponta Negra)

A saída para uma possível melhora no sistema carcerário brasileiro apontada por DeSousa é o fim da ideia de que todo “crime” tem que ser punido com pena de prisão. Mas que para isso, é necessária a mudança da opinião social. “A sociedade tem sua imaginação coloniza e ocupada pela ideologia punitivista, e que toda punibilidade é a prisão. Como se não existissem outras medidas, outras formas, outros métodos para a reeducação daqueles que chamamos de “criminosos”, ‘bandidos’ – a própria lei já concebe as chamadas penas alternativas”.

 

Mais além, ele acredita que a população precisa almejar o fim das prisões, como aconteceu com os manicômios. “Hoje, muitos se escandalizam quando falamos no fim das prisões, porque as enxergam como naturais, necessárias e inevitáveis. Mas são pessoas que esquecem que o que foi construído pode também ser revogado. Poderemos ter sociedades sem prisões no futuro próximo, é só construirmos um consenso ético-moral para tal, e inventarmos outros modos de lidar com o assunto do crime e dos chamados criminosos”, finaliza.

 

 

 

 

*Professor Alípio DeSousa Filho é um cientista social brasileiro, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Natal, atuante no campo das teorias críticas contemporâneas, sob influência do pensamento de Michel Foucault e Michel Maffesoli.

Leonardo Dantas

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