Rio Grande do Norte, quarta-feira, 24 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 29 de janeiro de 2017

Entrevista: Antropóloga Juliana Melo fala sobre as prisões brasileiras

postado por Leonardo Dantas

“As facções crescem no espaço deixado pelo Estado”

Na segunda entrevista do nosso dossiê “Prisões”, conversamos com a professora Juliana Melo do Departamento de Antropologia/PPGAS da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ela falou sobre as condições das prisões no Brasil e a relação com as desigualdades sociais e a criminalização da pobreza. Juliana esteve presente em Alcaçuz e teve contato direto com os familiares dos apenados e também faz parte da Frente de Apoio aos Familiares e de Acompanhamento do Sistema Penitenciário do RN.

As famílias estavam no lado de fora, na angústia de querer saber se seu parente estava vivo ou não. (Foto: Avener Prado/ Folhapress/ VICE

(Foto: Avener Prado/ Folhapress/ VICE

1 – As rebeliões que tem explodido no Brasil tem relações entre si?

Tudo que aconteceu em Alcaçuz tem relações sim com o que ocorreu em Manaus, Roraima, e assim sucessivamente. Na verdade, em 2016 já teve uma rebelião em alcaçuz e todas as celas já estavam destruídas. Esse processo, aliás, faz parte de uma crise no sistema prisional que já perdura há anos e é resultado das nossas políticas de encarceramento em massa, da seletividade da justiça, do modo como prendemos as pessoas no Brasil, 40% das pessoas presas são presos provisórios e sequer foram julgados ainda.

2 – Pode-se apontar alguma “raiz” do problema?

Essa questão diz respeito ao processo de criminalização da pobreza, a nossa política de “guerras às drogas” e a omissão da sociedade civil. De um modo geral, a sociedade acredita que no presídio só tem gente “que não é santa”, e que a pena pelos erros cometidos deve ser a vida em um inferno, como são nossos presídios. É a partir da vivência em um lugar marcado pelo terror e pela desigualdade, a vontade das pessoas que estão lá dentro se organizarem e se tornarem ainda mais violentos cresce. Pois é essa a resposta que podem dar a sociedade e que é escutada por todos. Ou seja, Alcacuz é só a ponta do iceberg. O caso não se restringe de modo algum ao RN, ou só as prisões daqui.

3 – Por que o crime organizado cresce tanto no país?

O crescimento do crime organizado aqui e no Brasil de um modo geral é resultado das nossas políticas de encarceramento em massa e da criminalização da pobreza. Sabemos que a população que está presa, em sua maioria, é jovem, de classes vulneráveis e baixa escolaridade. São pessoas, como pesquisei no Distrito Federal, que as vezes já tem parentes e familiares que já foram capturados para dentro das prisões. Essas pessoas, sem expectativa, estão sendo jogadas na grande lata de lixo que são nossas prisões e ali precisam sobreviver contando, em grande parte, apenas com a ajuda de suas famílias já vulneráveis. Esse ambiente, as condições estruturais, a superlotação, a inserção de pessoas que não tem nenhuma vinculação com o crime organizado de modo mais amplo, são colocadas todas juntas e precisam sobreviver. E é nesse espaço de miséria, deixado pelo Estado através da aplicação apenas de uma política de encarceramento, que favorece a formação dos grupos organizados. Na medida em que se organizam vão se expandindo e exigindo a necessidade de novas alianças ou mesmo de grupos que se opõem as facções dominantes.

Como é o caso do Sindicato do Crime aqui que, claramente afirma que surgiu para organizar os “manos” frente ao expansionismo (e opressão) do PCC no RN. Ou seja, são processos muito complexos e envolvem sérias escolhas políticas.

4 – Existe alguma resposta para isso?

É preciso que jovens em situação de vulnerabilidade tenham acesso não apenas as políticas de encarceramento, mas a educação cidadã. Com isso, eles possam buscar outras alternativas que não o crime, que, para muitos, é a única forma de obter reconhecimento.

A situação é muito delicada e o poder público parece estar sem saber como conduzir a questão, haja visto que a questão continua sem uma solução definitiva. Acredito que foi lamentável deixar que o massacre, iniciado no sábado no final da tarde, acontecer durante toda a noite. Acredito que foi lamentável só mandar uma ambulância para lá no dia seguinte. Acredito também que não basta só a polícia de choque entrar lá e depois sair. A construção de um muro não será suficiente. E acredito que a cada minuto que passa a situação tende a ficar mais tensa.

5 – A senhora esteve presente in loco durante todo o caos, como foi seu contato com os familiares que estavam do lado de fora?

As famílias estavam no lado de fora, na angústia de querer saber se seu parente estava vivo ou não. Essas pessoas não tinham tido informações oficiais de nada. Mulheres dormiram ao relento desde o início com a angústia de ouvir seus maridos, filhos, gritarem por socorro achando que seriam mortos no próximo minuto. É uma violência sem tamanho. Acredito que ouvir essas famílias poderia ajudar muito nesse processo e o que vejo é apenas a criminalização delas, como se também fossem potencialmente criminosas. Desde que estive lá, sempre do lado de fora, não vi membros do Ministério Público, Defensores ou Promotores. Ninguém teve acesso ao interior da prisão de forma adequada, a não ser um jornalista da Rede Globo, por exemplo. As informações são muito pouco claras e o tempo é um fator contrário.

(Foto: Avener Prado/ Folhapress/ VICE)

(Foto: Avener Prado/ Folhapress/ VICE)

6 – O caos já está nas ruas com os recentes ataques à ônibus, a situação ainda pode sair mais do controle?

Sim. A guerra já está nas ruas e está vinculada a tudo isso. Na verdade, como relatou em entrevista, a própria Vilma Batista, presidenta do Sindicato dos Agentes Penitenciários, já se sabia que a transferência dos presos do Sindicato do RN geraria esses conflitos, que são, sim, respostas a tudo que está acontecendo. Diz respeito também a disputa territorial pelo controle do crime e tráfico de drogas, que é um negócio que movimenta bilhões devido em grande parte a política de repressão apenas.

É importante notar ainda, que embora não percebamos, está em questão não apenas a disputa por territórios, mas a questão da honra e do reconhecimento para esses grupos. E tudo isso envolve ciclos de vingança e retaliações, que não arrastam apenas os que estão nas prisões, mas também quem está fora e até mesmo seus familiares que nada tem a ver com tudo isso.

Aliás, é bom notar ainda que nem todos nas prisões pertencem às facções. Em Alcaçuz, por exemplo, têm os “irmãos”, que são os evangélicos e que estão nesse fogo cruzado e sendo pressionados. Em uma situação como essa, aliar-se ou não a uma facção pode não ser simplesmente uma questão de escolha, mas uma necessidade de sobrevivência também. O que você faria se fosse um réu primário, sem acesso a advogado, que foi preso por uma quantidade pequena de maconha, por exemplo, e se visse no meio desse conflito? Enfim, estamos formando exércitos de criminosos com essa política atual e com a falência estrutural das prisões. E a população tem que estar ciente de que não basta apenas prender, mas é preciso prender com “qualidade”. Já temos uma das maiores populações carcerárias do mundo e a violência não está diminuindo, pelo contrário.

7 –  Qual a sua opinião sobre as possíveis negociações do Governo com as facções?

Em relação a essa questão, que é muito delicada, acho que a negociação deveria acontecer, mas envolvendo todos os lados do conflito e não apenas um grupo ou outro. Acho que uma boa ponte seria justamente ouvir as famílias e contar com a ajuda delas. De todo modo, as coisas precisam estar mais transparentes. Nós criamos, por exemplo, uma frente de apoio às famílias e estamos pedindo informações, mas somos fomos até impedidos de entrar em coletivas. Ou seja, a transparência é muito importante nesse processo e a falta dela um impeditivo.

8 – A gente percebe não só um aumento no crime organizado, mas também na violência urbana, por que? Quais políticas públicas estão sendo desenvolvidas para minimizar esse processo? 

Sim. Como eu disse, já temos uma das maiores populações carcerárias do mundo – alguns dizem que somos a terceira maior e outros a quarta. Prendemos muito também, mas prendemos sem qualidade: há pessoas que não foram julgadas; há pessoas que já poderiam ter saído das prisões e continuam lá, pois não tem um advogado ou defensor público.

Desde a Lei da Revisão das Drogas, de 2006, houve um aumento de quase 30% de prisões por tráfico, pois na lei não há uma quantificação do que seria tráfico ou não e, ao final, é o juiz que bate o martelo.  No entanto, conforme pesquisas que venho fazendo, a maior parte das pessoas presas são “mulas”, ou seja, transportam pequenas quantidades de droga e não tem vinculação maior com as redes criminosas e que, quando presas, passarão a ter de forma mais enfática. A prisão dessas pessoas. Por outro lado, é só ” enxugar gelo”, pois são a hierarquia mais baixa dessa rede e os primeiros a serem capturados pela máquina de moer gente que é a prisão brasileira.

No caso das mulheres, por exemplo, 70% está presa por essa questão justamente. E se continuarmos a prender tanto quanto fazemos, e desse modo, daqui a pouco quantos por cento da população brasileira vai estar presa?

A falta de oportunidades para jovens das periferias, a seletividade policial que sabemos existir nesses lugares, a falta de acesso a uma educação de qualidade e cidadã também é parte desse processo. Aliás, só vejo saída com o fortalecimento da educação e o que vemos justamente é a retirada de recursos dessa área para a construção de novas prisões. Quando falo em educação, as pessoas dizem: “Ah, mas isso demora muito. O que fazemos agora?”. E assim continuamos no mesmo caminho, que é o trilhado há pelo menos 30 anos.

A questão da desigualdade social perpassa toda essa questão também e se reflete no modo que gerimos nosso sistema de justiça. Não vejo saída sem o fortalecimento do acesso de todos a justiça, a valorização dos defensores públicos, a aplicações de medidas alternativas para crimes de menor potencial ofensivo e participação da sociedade de forma geral nesse debate.

De modo geral a população só se interessa por essa questão quando temos um conflito dessa magnitude e, muitos repetem, que “bandido bom e bandido morto”. Entendo aliás toda a revolta da população, pois somos um dos países com a carga mais alta de impostos do mundo e não temos acesso a um ensino público de qualidade, saúde, segurança, etc. No entanto precisamos começar a refletir que não é uma coisa ou outra, mas que as duas coisas estão relacionadas. Enquanto apenas ficamos repetindo isso, também damos nosso aval para que esses ciclos se perdurem e se intensifiquem.

É preciso pensar que isso apenas legítima a criminalização da pobreza e que, nesse sentido, só estamos dando nossa contribuição para que cada vez mais nossas prisões sejam lotadas por pessoas pobres, sem escolaridade e que ali dentro irão ter contato com o crime organizado e precisarão sobreviver em um ambiente de miséria e gestão dessa miséria, além de buscar reconhecimento como puderem.

Por fim, é preciso fortalecer também o serviço de inteligência da polícia de modo geral e rever a própria lei de criminalização às drogas. Temos uma baixa resolução dos crimes de homicídio no Brasil, por exemplo, e um excesso de prisão de “mulas” e “soldados do tráfico”. Só isso não adianta. Ao contrário, só aumenta o caos.

Juliana Melo é doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília – UnB, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e graduada em Ciências Sociais pela UnB. Leciona no Departamento de Antropologia/PPGAS da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, onde coordena o Grupo de Pesquisa Cultura, Identidade e Representações Simbólicas – CIRS.

Leonardo Dantas

Comments are closed.

Cidades

Entrevista: Sociólogo Alípio DeSousa fala sobre punitivismo

Segurança Pública

Onde está nossa Bogotá