Rio Grande do Norte, quinta-feira, 28 de março de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 22 de fevereiro de 2018

Cartas que (ainda) te quero cartas

postado por William Eloi

Para Vislei Gonçalves

Foi há mais ou menos dezessete anos. Era um dia de sábado. A crônica havia saído em uma edição do extinto O Poti. Eu estava ali, encerrado em um cubículo, dentro de um elevador que dava para o portão principal. Trabalhava na portaria de uma faculdade particular e – mesmo desarmado – tomava conta de todo um prédio, que ainda incluía computadores, laboratórios de todos os tipos e peças anatômicas orgânicas. Não havia expediente acadêmico aos sábados à noite, então aproveitava para ler todos os jornais que a faculdade possuía a assinatura, e que chegavam à portaria, já que eu estava só, e os cadáveres – as peças; permaneceriam submersas em seus tanques. Mudas.

O nome da crônica era “Cartas que te quero cartas”, do jornalista Osair Vasconcelos. Nela, com certo saudosismo e desalento, o autor apontava o fim de um dos mais antigos modelos de românticos de comunicação, A Carta, com o surgimento do vírus Antraz (ou Anthrax), usado como arma biológica pelo Talibã.

Diferentemente do que Osair profetizou à época, A Carta saiu vencedora e nunca mais se ouviu falar na mídia de algo relacionado ao carbúnculo, salvo a banda Nova Yorquina de trash metal, de mesmo nome, e que no período ficou constrangida com a associação bizarra.

A Carta só começaria a ver sua derrocada, seu modelo relegado ao canto na história, com o nascimento do e-mail, a ascensão das redes sociais, e, mais recentemente (?), o fenômeno WhatsApp.

Difícil imaginar todo o lirismo pungente em que Oscar Wilde escreveu para o seu amado Bosie, sob as lágrimas derramadas nas folhas de papel atrás dos muros de Reading ou a famosa troca de correspondências entre os poetas Rainer Maria Rilke e Franz Kappus; tudo isso digitado com a supressão de substantivos, verbos, adjetivos.

Em uma Carta há tempo (ou havia) para sermos reflexivos, cuidadosos em cada letra, e por isso, mais profundos. Tempo para nos acomodarmos ao banco- como um concertista passando em revista a sua pauta, depois de revisado todo o programa, suspira.

Algumas Cartas poderiam levar até um pouco de perfume ao ser amado; o fio de um cabelo caído ali por descuido. O tremor em cada letra pela emoção, ou a inabilidade do desenho na forma cursiva, denunciando a instrução humilde de quem sabe escrever pouco mais do que o próprio nome, mas que mesmo assim, desfilava seus garranchos com orgulho.

E mesmo as que ainda estavam guardadas há muito tempo em velhos baús, já quase esquecidas, podiam ser acariciadas com a ponta dos dedos, ou das luvas, percorrendo lhes cada linha, admirados com a folha enrugada, com a ação da atmosfera, que lhe conferiu um ar amarelo de “dignidade”, ao mesmo tempo em que pensávamos: Parece que foi ontem…

E as Cartas ilustres, dignas de objeto de estudo, ou adoração. Memorabílias que definiram certos rumos ou acontecimentos na história, protegidas geralmente por vidros e sistemas de seguranças-a exemplo das missivas de Freud e Jung, expostas num museu de Zurique, relatando ao público curioso desde os primeiros anos da amizade entre os dois gigantes da psicanálise ao rompimento definitivo ou como os ataques descritos à mão, de um Lennon magoado e furioso, a Paul McCartney, arrematada por milhões de dólares.

Lembro-me de quando ainda garoto escrevia carta ditadas pela minha mãe para a parentela – Ela não sabia escrever- Com meio pai passando para lá e para cá, e vez por outra, vociferando qualquer coisa do tipo sobre meus ombros “Você não deve repetir a mesma palavra!” ou, “Resuma tudo o que você quer dizer!” e mesmo assim, quase sem querer, ensinava-me um pouco do que eram os rudimentos da técnica de comunicação.

É difícil de imaginar tudo isso na era da “informação”, porque, entre os toques nervosos em tablets e smartphones apenas informamos; estamos sempre enviando mensagens enquanto fazemos outras coisas. (Bem, acho que você certamente já teve a experiência de conversar com alguém enquanto essa pessoa lhe acena positivamente com a cabeça e responde um “Zap”).

E aqui, apesar de não ser um bruxo, lanço também minha profecia, minha visão do futuro:

Haverá o dia, em que as máquinas irão criar a transferência de consciência, o implante de falsas memórias, mas sensação física do primeiro toque, do primeiro cheiro, dessa sinestesia geradora do mundo, não – por mais que a experiência da “leitura” e da “escrita” também nos transporte além de nosso ambiente físico-corpóreo, como um link– porque quando lançamos os dedos ou o olhar sobre a superfície de qualquer coisa, a fim de ler, de  nos comunicarmos, há ali também qualquer coisa de fetiche, de sedução. Como o hábito de fumar, que não apenas está relacionado simplesmente ao trago, ao gosto da nicotina, mas a sensação do dedo rolando a roldana contra a pedra de pederneira, a chama que sobe sob o gás propano.

No fim, é a velha ilusão do tempo em que a hiperconectividade nos coloca agora. A sensação de estarmos indo lento demais num piscar de luzes, de sins e de nãos, a velocidades cada vez mais rápidas, e por isso, frustrados, achando-nos out, nos entupimos de Lexotan e vemos o romantismo como coisa do passado.

 

 

 

William Eloi

Escritor e ex-guitarrista da banda de rock Electrilove.

2 Responses

  1. Marcelo Henrique Neves Pereira disse:

    Lindo e profundo texto. Impossível não se emocionar com a sensibilidade do autor em reavivar aos que desfrutaram da magia e do encanto proporcionado pelos efeitos das cartas, como as marcas das lágrimas, o perfume ou até mesmo o toque quando se há a necessidade de sentir a outra pessoa…o romantismo definitivamente é essencial ao um mundo feliz, e a conectividade aos poucos e de forma sorrateira nos tira a capacidade do encanto, e do mágico.

  2. Primeira vez que posso comentar e ironicamente, não sei o que dizer… Mas mesmo assim direi.
    Tocante, no que diz respeito as cartas, a magia, ao sentimento que nos é propiciado ao lê-las.
    Me senti lisongeado ao ver meu nome aqui. Obrigado. Sem palavras.

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