Rio Grande do Norte, quinta-feira, 25 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 5 de maio de 2019

O governo mira nas humanidades, mas acerta nas desigualdades

postado por Túlio Madson

Encarar as universidades públicas como instituições coesas onde impera a uniformidade de pensamento é uma visão reducionista delas, geralmente de quem não as frequentou, ou pelo mal desempenho nelas se tornou ressentido. Os câmpus universitários são espaços plurais e complexos, que atuam em diversas atividades. As áreas de humanidades, alvo do ataque governamental, especificamente Filosofia e Sociologia, abrigam diferentes pesquisas e correntes de pensamento, consumindo a menor parte das verbas de pesquisa das universidades públicas. Pesquisas nas engenharias, medicina, o custeio de laboratórios, serão afetados em maior medida, pois dependem em maior escala de apoio financeiro. Precisam de equipamentos e reagentes para se efetivarem, além das bolsas de pesquisa. Enquanto livros e deslocamentos são menos onerosos.

O corte que foi justificado moralmente para coibir a balbúrdia irá afetar pesquisas que poderiam beneficiar a cadeia produtiva, gerar empregos e renda, o que mostra que a economia produtiva não é o foco do governo, que protege o rentismo. A guerra cultural em curso vê nos professores de humanidades um inimigo a ser combatido, para se livrar do rato queima-se o Ministério inteiro e desestrutura todo o ensino público no país.

Quando o Ministro da Educação afirma que Filosofia e Sociologia “podem” ser estudadas desde que cada um pague do próprio bolso, está reforçando a narrativa que tenta enquadrar a educação como um serviço, não como um direito. Neste ponto, a guerra cultural encontra uma aliada nas empresas de educação privada. A educação como serviço reproduz desigualdades. Nenhum estado-nação superou o flagelo da desigualdade sem passar pela educação pública, principalmente a básica, cuja verba também foi cortada. As universidades públicas são conquistas da sociedade brasileira que a encaram como meio de ascensão social, a conquista de uma educação básica de qualidade, pelos mesmos motivos, são objetivos que também merecem ser conquistados. Esta meta não implica o desmonte da universidade pública, podem ser metas complementares. Testemunhar seus filhos em universidades públicas de excelência ainda continua sendo o anseio de grande parte das famílias. Apesar das condições adversas e desfavoráveis, o acesso a uma universidade de excelência é tido pela população como um direito, muitos possuem em seu imaginário casos de conhecidos e colegas que superaram uma condição social vulnerável pelo ingresso em institutos federais e universidades públicas. Se este acesso fosse um serviço, muitos deles jamais teriam esta oportunidade.

Sob as vestes de uma guerra cultural tenta-se dissimular a retirada de direitos, o direito à educação de qualidade é um deles. O aumento da desigualdade será seu efeito mais nocivo.

Cultural? A guerra é social!

Contra-ataque

Não envergonhar-se, não temer

Qual o emblema da liberdade alcançada? — Não mais envergonhar-se de si mesmo.

(NIETZSCHE, A Gaia Ciência. Af. 275)

A vergonha é uma forma velada de proibição, mais sútil do que as normas. Seu poder coibitivo não depende da ação de uma vigilância externa, o próprio indivíduo é seu algoz. Onde a vergonha atua a proibição legal não é necessária. O adversário envergonhado é sempre mais fraco. O medo e a vergonha debilitam. Nesse caso o orgulho fortalece. Poucas vezes se viu uma campanha estatal tão intensa de ataque às humanidades e a carreira docente como um todo, sobretudo nas universidades públicas. Mesmo com os cortes no orçamento das universidades federais no próximo semestre, que afetará seu funcionamento estrutural, há algo que não pode ser tirado, que vai além dos espaços físicos. Uma universidade é bem-sucedida por aquilo que seus integrantes levam de lá, não por sua estrutura física. Este caráter transformador das universidades públicas, que se tenta combater, não pode ser tirado por nenhum corte orçamentário. Apesar dos cortes estaremos lá. O apelo por um ensino estritamente técnico é inútil; em tempos de rápidas mudanças tecnológicas qualquer conhecimento técnico repassado logo estará defasado, mais importante é ensinar a aprender; mais importante é ensinar o cultivo da autonomia de pensamento em tempos polarizados e de informações duvidosas. Não há como tirar às Humanidades da equação, não há desenvolvimento sem ela.

Não somos nós quem devemos nos envergonhar, tampouco devemos temer.

Túlio Madson

Colunista na Carta Potiguar desde 2011. Professor e doutorando em Ética e Filosofia Política pela mesma instituição. Péssimo em autodescrições. Email: tuliomadson@hotmail.com

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