Rio Grande do Norte, terça-feira, 23 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 16 de janeiro de 2012

A história por decreto: Chile tenta substituir termo “Ditadura” por “Regime Militar”

postado por Alyson Freire

O presidente chileno Sebastian Piñera agitou o país com a decisão de substituir nos textos escolares do ensino básico o termo “ditadura” por “regime militar” para se referir ao período macabro e autoritário em que o general Augusto Pinochet governou o Chile (1973 a 1990). O regulamento no qual consta a proposta alternativa foi formulado e decidido pelo Conselho Nacional de Educação do Chile ainda no ano passado.

Como não poderia deixar de ser, o episódio fomentou polêmicas e críticas da oposição, e mesmo de alguns membros do governo, ao que seria uma tentativa desastrada de maquiar a história e arrefecer os ânimos políticos e da própria sociedade chilena contra os militares, Pinochet e seu governo.

É bem visível, a nós brasileiros, o que subjaz neste episódio. Afinal, por aqui, além das manobras linguísticas que tentam intitular a Ditadura e o golpe de Estado de “Revolução” ou “Ditabranda”, adota-se o silenciamento e o esquecimento propositados para salvaguardar os criminosos e os acontecimentos da justa apuração. Ora, é o conhecido ímpeto moral ou “eufemismos” das camadas conservadoras de tentar suavizar pela linguagem a violência política e o autoritarismo de um período cuja colização de forças foi formada por seus integrantes. Tanto lá como cá, com a odiosa expressão “ditabranda”, trata-se de um ato de higienização do sangue e da vergonha que sujam as mãos dos remanescentes e política e socialmente ligados às classes dirigentes do período autoritário nos mencionados países. Na política, a linguagem é também um instrumento de assepsia. Substituir a expressão “ditadura” por termos mais amenos e politicamente mais inofensivos é, entre outras coisas, uma tentativa reativa indisfarçável de “limpar o próprio nome” frente às futuras gerações. Daí a escolha estratégica do ensino básico. Joga-se aí lucros políticos futuros indipensáveis.

Mais ainda. Em sua positividade, tal atitude semântica diz respeito a uma modificação substancial do imaginário social, das opiniões e atitudes individuais e coletivas diante da natureza política do dito período autoritário. A escolha do epíteto – político, insista-se – para o governo de Pinochet é essencialmente estratégica. Ora, quando se ambiciona enfatizar em vez do viés político da “forma de governo” (ditadura), o viés do estrato social governante daquele período (militares), neutraliza-se o aspecto mais importante historicamente, qual seja, o tipo de experiência política com a qual se buscou ordenar a vida social. Isto quer dizer que as violações, a brutalidade, as perseguições, as restrições, os desaparecimentos (na ditadura de Pinochet, estima-se quase 4 mil indivíduos desaparecidos, segundo a comissão de investigação), as torturas, tudo isso que caracterizou a tônica e os instrumentos políticos da forma de governo em menção são suavizadas e secundarizadas em seu valor histórico, legal e moral.

Engana-se, portanto, quem julga haver nesta polêmica somente uma disputa de palavras, uma intransigente questão retórica. A disputa entre palavras, sobre como nomear e narrar o passado, inelutavelmente espelha posições políticas e visões de mundo combatentes entre si para impor a verdade sobre algum dado da “esfera dos negócios humanos”, como diria Hannah Arendt. Nesse sentido, esta disputa é, antes e fundamentalmente, uma batalha política pela imposição do sentido de uma experiência histórica cujo campo e as armas são os discursos e as palavras. É em razão de seus efeitos de poder e de verdade, de suas implicações políticas, que a a linguagem é instrumentalizada. Frente a esta batalha pelo sentido de como nomear as coisas, de cobrir o autoritarismo sob disfarces mais vistosos e suaves, não podemos, portanto, ser nem omissos nem indiferentes por mais inocente e trivial que pareça ser as “palavras” que estão em jogo.

As palavras não são neutras nem simples cópias de uma realidade qualquer anterior. Elas criam e instituem realidades. Se a política é esta atividade, que, com suas relações de força e de hegemonia de certos grupos e visões de mundo sustenta, num equilíbrio sempre contingente e tenso, um mundo mais ou menos comum, isto é, uma sociedade em seus equilíbrios instáveis e fraturas, é, entre coisas, pela linguagem, pelas palavras, que este mundo comum é criado e constituído. Na e pela linguagem é que este dito mundo comum ganha som, ritmo e forma na atividade diária e nas consciências das pessoas. Nossa relação com a história, nossa visão e avaliação do passado, passa inevitavelmente pelo vocabulário, pelo repertório de palavras, com seus sentidos e significados explícitos e implícitos, que herdamos sem saber, muita vezes, que se tratam na verdade de ponto de vistas dos grupos de poder vencedores desta “disputa de palavras”.

Portanto, intervir nesta crucial mediação que é a linguagem significa, de um ponto de vista político, agir estrategicamente com vista a assegurar interesses de poder particulares, presentes e futuros, blindando às camadas dominantes a quem interessa do real poder e do potencial político das avaliações oposicionistas e da sociedade em geral. Mudar a história por decreto é uma maneira de intervir no campo dessas disputas e tensões políticas entre significados para impor uma determinada identidade ao passado, encarcerá-lo numa visão consensual e sem fraturas, e, assim, garantir lucros políticos vindouros.

A luta pelo sentido do passado é uma luta que se trava no presente, “no instante do perigo”, como o chamava o filósofo social e teólogo alemão Walter Benjamin. No momento em que se percebe a ameaça, emerge também, “nos de baixo”, como um olhar crítico voltado à história, o ímpeto de agir e combater a visão do passado que a tradição conformista das classes dirigentes ambiciona transmitir e congelar, expurgando deste as violências, dominações e barbarismos perpetrados.

Finalizemos, então, com o alerta de Benjamin com respeito aos perigos políticos para a emancipação que se imiscuem nas batalhas pelo sentido da história, pela imagem do passado e a identidade da tradição, das quais o episódio chileno recente é um exemplo, pois, do ponto de vista dos vencidos, sustenta Benjamin, a história nos ensina a real convicção “de que nem os mortos estão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso”..

Alyson Freire

Sociólogo e Professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRN).

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