Rio Grande do Norte, domingo, 05 de maio de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 5 de junho de 2011

#ForaMicarla, medo de atravessar a ponte?

Independente da qualidade do ensino que recebemos, a maioria de nós chegou a aprender coisas comuns. Uma delas, quando estudávamos História Geral e do Brasil, foi que os grandes navegadores e aventureiros antes de adentrarem ao – para eles – “Novo Mundo”, tinham muito medo de atravessarem o Canal da Tormenta, ou de cair no eterno vazio – já que acreditavam que a Terra era plana. Enfim, os mitos e lendas compartilhados eram muitos, o que, pelo menos em parte, acontecia porque durante muito tempo o restante do Ocidente permaneceu desconhecido aos exploradores europeus que, além do seu continente, já tinham algum conhecimento da China, Índia, e alguns outros povos orientais. Ora, o desconhecido sempre causou medo e fascínio, e nesse sentido, devemos sem dúvidas agradecer ao conhecimento cientifico que desconstruiu – e ainda hoje se esforça para isso –  barreiras que nos foram impostas e tidas como verdades inquestionáveis…

Tudo bem, estou falando de conhecer um “mundo novo” , que até pouco mais de cinco séculos não era conhecido… Tudo bem, é esperado que ocorra esse tipo de coisa, porém viver em Natal tem me permitido ouvir e ver algumas cenas pitorescas com relação ao bloqueio que algumas pessoas tem em ir a alguns lugares da nossa bela cidade – cheia de lixo, buracos e lagoas em meio as avenidas, mas ainda assim bela. Certa vez (acho que em 2006) fui surpreendido pelo pedido de um colega, graduando em Ciências Sociais, militante do Movimento Estudantil: ele simplesmente queria que fosse com ele ao Alecrim para lhe acompanhar na comprar duma bicicleta. Quando lhe perguntei o porquê de não ir só, ele disse que tinha medo do lugar, de ser assaltado, de levarem seu carro. Curioso foi que morei boa parte da minha vida nesse bairro, nunca tive problemas. Milhares de pessoas, entre transeuntes, moradores, comerciantes, etc., passam por ali diariamente, e não me parecem tremer de medo a cada ida ao lugar. Chegava a ser comico – apesar de trágico – ver meu colega quase que se escondendo atrás de mim. Talvez ele estivesse com medo de uma bala perdida (que não veio)… Tadinho, nem se ligou que apesar de grande eu não sou a prova de balas… O rapaz em questão, apesar de seu tamanho – poket – sempre foi tido como uma pessoa atrevida, um militante capaz de perder uma bolsa na UFRN pra não deixar de militar (alguns acham isso louvável, tsc, tsc…), mas incapaz de andar pelo Alecrim. Ok, cada qual com seus limites…

Atualmente moro na Zona Norte de Natal, tendo como ponto de referencia um lugar outrora bastante frequentado (se bem ou mal cada qual que faça seu julgamento): a antiga Shock Casa Show, palco de vários e grandes shows para os quais nunca fui (mas fui para o “Forró das Antigas” na Nova Shock). Já havia morado por essas bandas outras vezes (Isso, acertou, vivi quase um neo-nomadismo). Sendo assim, já tinha percebido o preconceito que muita gente não-moradora da ZN – e as vezes muitos dos que por aqui moram. Talvez seja emblemático dizer que uma amiga, moradora da Cidade Esperança – bairro tradicional, agradável, mas que sofre muito também com o preconceito de classe e com o abandono das autoridades públicas – falou que “morria de medo de ir pra aqueles lados”.

Falando especificamente da Zona Norte, os “nativos” devem concordar que há todo o tipo de discurso depreciatório com essa região. Claro, claro, existem exceções, mas o nome já é autoexplicativo. Assim como tem muito natalense que não sabe que sua cidade tem dezenas de favelas, existem outros tantos que nunca foram “do outro lado da ponte”. Talvez porque alimentem a crença de que alguma fera surgirá das profundezas do rio Potengi – se forem pela “ponte velha”- ou que o próprio Poseidon virá das profundezas do Mar, nadando ali pela Redinha, e partirá a “ponte nova” ao meio. Ah, evidentemente, tais perigo e seres míticos, para uma parcela da população adormecem durante o veraneio, e por isso podem passar sem correr riscos de morte. Existem ainda o grupo dos quixotescos aventureiros, que se sentem ousados por fazerem isso em outros períodos e votarem vivos. O que esperavam encontrar? Grupos antropófagos como os índios das tribos dos potiguaras que comiam os exploradores? Recentemente alguns amigos foram convidados para aplicar questionários para uma pesquisa de opinião pública na Redinha e voltaram surpresos com a receptividade dos moradores. Vai entender…

Exageros a parte, é cruel perceber o ostracismo imposto a ZN, seja nas piadas, na falta de visitas em casa (sinto isso na pele), no descaso com as ruas transversais as avenidas principais, a falta de um transporte público digno que não trate o cidadão (destituído de seus direitos) como usuário, mas como refém. Porém, o que me deixou profundamente inquieto nesse fim de semana, foi perceber que o esvaziamento do 7ºAto do #ForaMicarla no último sábado. Inicialmente os manifestantes se concentraram em frente ao Complexo Cultural João Chaves – antigo presídio. O horário marcado? 8 horas, mas foram começar a sair dali em direção a Pompéia – uma espécie de Alecrim da ZN – após às 10:30. Por que? Esperar chegar mais manifestantes. Chegaram alguns a mais. Dali, então, saímos, fechando timidamente metade da faixa da esquerda, para cumprir com o trajeto acordado e votado em plenária, assim, como o local, dia e hora do ato. Com um número considerável de pessoas, muitas das quais não estavam ali. Ok, essas coisas acontecem… Porém, ao contrário de outras mídias não pretendo apontar para um enfraquecimento do movimento. A recepção da população, seja na estrada da Redinha, onde até policiais em uma viatura buzinaram em apoio a manifestação, como ao longo de todo o trajeto, demonstrou franco apoio aos manifestantes. Definitivamente a velha máxima se sustentou nesse ato: “quantidade não é qualidade”.

Porém, fica a pergunta: Por que o primeiro ato na ZN do #ForaMicarla nas ruas contou com tão pouca representatividade dos seus mais atuantes manifestantes? Não se trata de desmerecer aqueles que foram, de maneira alguma? Mas de, sem querer dar uma de polícia, me atrevo a sugerir um dos motivos para isso: o ato foi na Zona Norte. Alguns vão discordar, dizer que teve a ver com o Arraiá do setor 2, e que não se aguentavam sobre os pés. Outros irão dizer que tinham diversas coisas para fazer. Oras, pelo que lembro o segundo ato se deu no meio da semana, sendo assim, a maioria tinha que trabalhar, estudar, cuidar dos filhos, limpar a casa, sei lá… E muito provavelmente esta mesma maioria não deixou de executar seus afazeres. Alguns desses manifestantes, curaram sua ressaca da sexta no horário que haviam votado para o ato, mas a tarde estavam a postos, ainda que com a cara amassada de sono, para ir para uma comemoração com o Grupo Artístico Pedagógico Pau e Lata. Adoro esse grupo, penso que sua presença no ato teria feito muita diferença e potencializado o caráter lúdico do movimento. Se a festa já estava marcada a tempos, o ato poderia ter sido adiado, ou… assim como alguns manifestantes, podiam ter saído do Setor 2 de manhã e ido para o ato… Tudo bem, ninguém quer mártires, como disse antes, cada qual sabe dos seus limites e suas prioridades…

O que quero apontar vai noutro caminho: muito mais forte do que a ressaca, o que impediu muitos manifestantes de darem prioridade a este ato em específico – algo que a maioria nem vai aceitar – foi o preconceito socialmente compartilhado que isola a Zona Norte perversa e sutilmente. Não se trata de deslegitimar a seriedade de tantas pessoas, muitas delas ficaram acampadas durante os onze dias na Câmara Municipal de Natal, mas tentar provocar algumas reflexões, por mais doloridas que sejam. Existe um outro fator além do geográfico… Apesar de não ter dados estatísticos para atestar meus argumentos, acredito que a maioria dos manifestantes que foram as ruas, assim como grande parte dos acampados, são pessoas que compõem a classe média – até a média-alta – da cidade, e moram na Zona Sul. Bingo!!!

No primeiro dos três dias que fiquei acampado na CMN – emocionado com a abertura dos portões da Casa e com os manifestantes nos recepcionando com flores brancas – perguntei a um amigo se realmente – como já desconfiava – se a maioria que estava acampada era de classe média, como eu e ele. Com a confirmação fiquei observando que esse era certamente um dos fatores comuns aquelas pessoas em meio aquela bela pluralidade de grupos. Sendo assim, eram pessoas que tinham dinheiro para financiar sua estadia por ali – ainda que fazendo as “vaquinhas” tão indispensáveis, e que podiam, quando precisavam, ir em casa, pegar roupas limpas, dormir e tomar um banho com mais tranquilidade. Nada contra, acho justo, eu mesmo fiz isso…

Vou insistir na tese de que o ato do #ForaMicarla nas ruas sofreu sério esvaziamento, apesar do seu brilhantismo, porque a proposta tiraria as pessoas de sua zona de conforto, geográfica e de classe. Atos em bairros mais pauperizados estão sendo programados, como no Felipe Camarão, acredito que irão acontecer, provavelmente com mais gente… Por que? Tenho um palpite: romper com o preconceito de classe, indo a bairros do lado de cá, é relativamente mais fácil quando não se precisa atravessar as pontes…

Infelizmente não dá para falar sobre tudo. Não em apenas um post… Seria necessário outro do mesmo tamanho para refletirmos, por exemplo, sobre as estratégias que possíveis futuros candidatos a prefeito e a vereador vão
utilizar – ou melhor estão utilizando – para ganhar visibilidade com o #ForaMicarla.. Mas isso são outros quinhetos… Não quero perder a “fé” nesse movimento, apenas torço que as necessárias autorreflexões e as tensões, disputas e interesses…

Nesse espirito espero que o movimento extrapole as Zonas de Conforto e permaneça agindo de acordo com seus bordões: “Até que tudo cesse nós não cessaremos” e “Ocupar, Produzir e Resistir”… E olhe, não vai ter fera, nem muito menos Poseidons surgindo das águas… Podem confiar…

Gilson Rodrigues Jr

Bacharel em Ciências Sociais (UFRN) e antropólogo - mestre e doutorando pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi professor substituto da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde permanece ministrando aulas no curso de Ciências Sociais (EAD). Tem experiência nos seguintes temas: desigualdades, marcadores sociais da diferença; remanescentes de quilombo e antropologia do direito/ jurídica. Atualmente se dedica a estudar no processo de doutoramento a interface entre ações humanitárias, Estado e religião,

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