Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 16 de setembro de 2021

Ipês amarelos II: de repente, uma percepção desabrocha

postado por Joao Paulo Rodrigues

Como rito de passagem, em todo florescer, todo amanhecer Tirius fitava os ipês que ficavam em frente à sua casa. Através de sua janela, via os ipês bailando com suas cores roxa e amarela. As vibrações daquelas cores lhe davam energias para começar o dia.

Tomava seu café cedinho, porque queria fazer sua oração matinal sob a influência dos pássaros. Tirius morava com alguns colegas de faculdade e com Beta, seu peixe beta.

Sempre saía cedo de casa, porque tinha de estar no trabalho às 9h. Não se tratava de privilégio, mas de situação: trabalhava no shopping central da cidade do Natal. Gostava do que fazia. Entre um intervalo e outro, fumava sua liamba na cobertura do estabelecimento.

Tirius sempre foi uma criança normal, que fazia coisas normais. Porém, com os hormônios da adolescência vieram também novas percepções de si e sobre o mundo. Tirius continuou a fazer suas normalidades, todavia, algo mudou-lhe.

De uns tempos pra cá, Tirius já não via mais graça em nossas piadas homofóbicas, nem demonstrava interesse em nossas bobagens machistas. Na verdade, ouso dizer, Tirius tinha expressão de nojo quando falávamos que “fulana de tal é até bonitinha, mas é um homem vestido de mulher; gostosa, mas um macho”.

É interessante notar como as pessoas mudam. Eu conheço Tirius desde a nossa mais tenra idade. A bem da verdade, sua amizade foi a primeira de que me lembro. Todos éramos muito otários. Como crianças normais, éramos idiotas. Nossa educação nos levava à condenação do espírito. À época eu não sabia por quê, mas tinha a impressão de que Tirius buscava evitar a danação de seu espírito, ao fugir daquelas conversas tronchas.

Crescemos um pouco mais; tornamo-nos quase adultos, digo, jovens com cerca de 25 e 26. Por essa época já não existia tantas estupidezes como dantes, porém, ainda havia! Eu já não falávamos tantas asneiras como na adolescência. Todavia, alguns de nossos amigos continuavam como antes, agora, porém, se chamavam ‘bolsonaristas’, apesar de nem terem votado no Presidente. Pelo que eu entendi, o ‘bolsonarismo’ é uma visão de mundo que dá conta de tudo que não presta no ser humano.

Aliás, antes que eu me esqueça, eu era uma das pessoas que dividia o ap com Tirius. Além de mim, havia mais duas amigas conosco. Todos amigos entre si. Uns mais, outros menos.

Dentro dessa atmosfera de normalidade do cotidiano, percebi que algo não estava indo bem com Tirius. Notei que havia alguma coisa incomodando sua existência. Tentei puxar assunto, mas fui ignorado. Como deve ser, respeitei seu silencia e sua decisão por privacidade.

Um dia qualquer Tirius resolveu me procurar para conversar. Disse-me que algumas coisas estavam lhe causando angústia e queria compartilhar comigo. Como todo fofoqueiro, pensei que eu tivera falado demais, pensei que tinha sido apanhado. Disfarçando meu desespero, meneei a cabeça positivamente, anuindo que conversar é importante.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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