Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 10 de setembro de 2021

Uma prosa para Fernando Bastos: notas pessoais sobre um querido professor

postado por Gabriel Miranda

O professor Fernando Bastos tinha algo em particular que o tornava diferente de todos os seus colegas de departamento. E não era o fato de estar religiosamente com o seu crachá de funcionário da UFRN no pescoço. Fernando transmitia placidez ao mesmo tempo que nos contagiava com sua incessante pressa de viver.

Eu apenas conheci o professor Fernando quando este já tinha cabelos brancos, e, portanto, não sei desde quando ele cultivava essas valiosas características. Mas, assim como ele, sou um entusiasta da formulação de hipóteses. Por isso, meu palpite é que essa serenidade apressada apenas é possível para aqueles que já viram a morte de perto, e, com isso, aprenderam que a vida é fugaz – e traiçoeira, como diria meu amigo Marlon Altavini – e o narcisismo das pequenas diferenças de tipo acadêmico é apenas isso: um narcisismo das pequenas diferenças de tipo acadêmico.

Em algumas de suas aulas, Fernando contava de forma bem-humorada que já havia enfrentado súbitos problemas de saúde que quase o mataram por pelo menos duas ou três vezes. E, a fim de transformar o trágico em cômico, concluía: “sempre durante o carnaval”. Lembro de, em 2013 ou 2014, tê-lo encontrado no carnaval de Ponta Negra. “Hoje não, professor”, pensei. Não foi daquela vez. Ainda bem. Graças a Deus.

Por falar em Deus, sobre ele também tivemos nossas hipóteses, embora não tenhamos ido muito longe – e tampouco queríamos, é verdade. Em uma aula sobre o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) chegamos, não sei como nem sei por que, no debate acerca da existência divina. Conversa vai, conversa vem, eu disse algo como: “Professor, aquele que defende a inexistência de Deus professa uma fé tanto quanto aquele que é religioso”. Fernando parou, me olhou por alguns segundos, sorriu e concordou. “É verdade”, disse ele. Nos demos por satisfeitos com essa síntese sem precisar avançar nos intermináveis debates espirituais. Afinal, como disse um outro Fernando, com o heterônimo de Alberto Caeiro:

“Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.

Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.

Se há alguém para além da curva da estrada,

Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.

Essa é que é a estrada para eles.

Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.”

Entre nossas afinidades, residia também o apreço pela poesia. Em 2015, na iminência de concluir minha primeira graduação e tendo o professor Fernando como uma de minhas grandes inspirações ao longo do curso, convidei-o para compor a banca avaliadora do meu TCC. Naquele 17 de junho de 2015, tive um dos momentos mais emocionantes da minha curta experiência acadêmica: quando recitamos, de forma intercalada, o poema Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos.

Até hoje ainda não encontrei analogia melhor para compreender a função do Estado burguês do que o verso “a mão que afaga é a mesma que apedreja” e, igualmente, até hoje guardo, com muito carinho, esse dia na memória. A mim, que já lhe agradeci em vida, não custa nada agradecer também em morte: obrigado pela acolhida e por não poupar palavras de incentivo para aquele jovem de 21 anos.

Professor e pesquisador que não via problema algum em dizer “não sei”, Fernando se foi, mas como tudo é dialética, ele também fica. E deixa, para mim e tantos outros de seus alunos, o melhor que um professor poderia deixar: sua disposição, seus ensinamentos, sua predileção pela dúvida, seu exemplo. A maior lição que aprendi com Fernando – e que, por vezes, infelizmente me esqueço – não diz respeito às ruralidades – seu principal objeto de pesquisa – ou a Norbert Elias – o autor por quem compartilhávamos interesse –, mas a sua postura serena e ao mesmo tempo assertiva diante da vida.

Do professor que fez de uma aula sobre o Pronaf um seminário sobre existencialismo e de uma banca de defesa de TCC, um sarau; que faça, agora, da morte, a vida, em forma de inspiração para aqueles que seguem por aqui lutando por dias melhores para o Brasil, em toda sua diversidade de cores, céus e terras.

E para os dias difíceis, como hoje, fica em mim a lembrança de um Fernando bem-humorado, que me ensinou uma valiosa lição metodológica. Dizia ele que a estatística, assim como o biquíni, revela quase tudo, porém esconde partes muito importantes. Hoje, ao tomar conhecimento de seu falecimento por meio de uma publicação no instagram do CCHLA, pude imaginá-lo, com o bom humor que lhe era típico, olhando o post e comentando em tom jocoso: “Ué, mas se estão todos curtindo a publicação, isso significa que estão felizes com minha partida? Não vão nem sentir saudades?

Gabriel Miranda

Cientista social (UFRN), mestre e doutorando em Psicologia, também pela UFRN. Pesquisador associado ao Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência (OBIJUV).

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