Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 25 de março de 2023

ESPETACULARIZAÇÃO E LETALIDADE DO ESTADO: A QUEM INTERESSAM?

postado por Carta Potiguar

Alipio De Sousa Filho – Professor do Instituto Humanitas-UFRN

            Nos últimos dias, no noticiário local e nacional, ouviu-se: “há duas semanas, o Rio Grande do Norte tornou-se refém da insegurança e do medo”. A verdade é que não apenas “há duas semanas” mas por anos seguidos, nas últimas décadas, habitantes do RN são submetidos cotidianamente a sentimentos generalizados de insegurança e medo. Mas o que, como é sabido, não é fenômeno específico do estado. O medo e a sensação de insegurança têm construído o imaginário e as relações cotidianas das populações das diversas cidades do país, nos diversos estados e regiões, e há décadas seguidas.

Da experiência diária com violências diversas, que vão das ações de facções que amedrontam vastas áreas das nossas cidades ao desamparo de seus habitantes pelas omissões e negligências do Estado e dos governantes, surgem o medo, a sensação de insegurança e as narrativas nem sempre baseadas em fatos. Diga-se ainda, sentimentos também incitados pelo sensacionalismo calculado de mídias e redes sociais, por motivações políticas ou procura por “audiência”.

Pelo modo como autoridades, sociedade e órgãos de imprensa reagiram às ações da facção que assumiu coordená-las no RN, nas últimas semanas, tudo foi tratado como algo inesperado e acidental: uma irrupção de atos a céu aberto, em grande escala e numa orquestração sem precedentes. Embora declarações públicas de autoridades do setor de segurança tenham sido feitas nas quais se disse que “serviços de inteligência informaram sobre os planos de ataques que seriam realizados”.

Após os primeiros dias das ações que aterrorizaram bom número de habitantes do RN, com autoridades de Estado parecendo atordoadas, iniciam-se operações policiais que logo resultaram em prisões e mortes de envolvidos nas ações. Tudo muito noticiado pelas mídias e redes sociais, com imagens de centenas de policiais em viaturas, helicópteros e cenas de detidos algemados. Avisos oficiais em rádio e TV foram emitidos, anunciando operações do aparelho de Estado, com imagens bem cuidadas, como em produções cinematográficas, e com uma locução assegurando o êxito das ações governamentais.

Não é a primeira vez que assim é! Em nível local e nacional, a cada ocasião similar, ações do Estado e seus poderes são realizadas e espetacularizadas para conter o que se chamada de “crise”, mas sem que sejam resultado de políticas de segurança pública duradouras, continuamente concebidas e planejadas. O que vemos é um Estado e seus poderes negligentes em formular políticas bem fundamentadas e duradouras de segurança pública, débeis em estratégias de desarticulação e desmontagem de organizações criminosas que atuam em prol de seus negócios nos mercados ilegais (principalmente das drogas) e por controle de territórios, armas e populações, submetendo cotidianamente milhares de pessoas ao horror de um poder-paralelo violento e totalitário, principalmente nas periferias de nossas cidades.

O mesmo Estado e poderes descomprometidos em oferecer à sociedade políticas e programas públicos de economia, educação, cultura e lazer que correspondam a esforços para retirar largas maiorias da população das pobrezas material e cultural, produzidas por desigualdades sociais a serem superadas, em grande medida causas primeira e segunda dos quadros crescentes de violência e criminalidade que se propagam nas cidades do país. Uma realidade na qual são afundadas crianças, jovens e adultos, sobretudo das camadas empobrecidas, que, enxergando o efeito perverso das desigualdades sociais que são mantidas em nossas sociedades, e sem perspectivas de uma participação igualitária na vida social, com acesso a bens e direitos, caem em desgraça nas mãos de organizações criminosas que lhes fazem falsas promessas de inserção ou ascensão social.

Não se trata aqui de repetir frases feitas nem ideias fixas, mas mil vezes já foi dito por diversos estudiosos da sociedade: não se pode pretender que indivíduos a quem a sociedade não oferta amparo e reconhecimento (oferecendo-lhes oportunidades e direitos iguais na participação social e acesso a bens materiais e simbólicos) disponham-se a com ela colaborar. O mais comum é que desses indivíduos a sociedade obtenha sentimentos de raiva, rancor, ressentimento, desejos de morte e destruição. O que nossas sociedades teimam em não considerar, tornando-se elas próprias objetos de previsíveis “ataques”. Até quando insistirão com a teimosia?

 E eis como organizações criminosas encontram entre jovens e adultos, cujas vidas estão submetidas a condições que os excluem do usufruto dos mais diversos bens e direitos, o “exército de reserva” que necessitam para recrutamentos que prometem reconhecimento e algum benefício material e financeiro. Chamando a si mesmas de “família”, facções constroem, em seus “salves”, uma semântica de pertencimento, ao transformarem “o crime” em um ente que age para proteger (“o crime está unido para lutar em prol do mesmo objetivo”) ou ente que requer união, solidariedade e socorro (“o crime vem sofrendo uma situação degradante por opressões, humilhação, desrespeito nas prisões”). Apresentando-se, pois, como alternativas ao Estado e à sociedade que não ampara, protege, cuida, criam a ilusão de pertencimento e proteção, cujo preço é a subordinação de jovens, famílias e bairros inteiros ao controle social pela violência em várias formas. E ainda deitam seus tentáculos no próprio seio do aparelho de Estado; o que, por sua vez, conta também com a negligência de autoridades e agentes públicos.

Nesse cenário, o que temos, até aqui, no país, é um Estado que prefere espetacularizar suas ações, adotar a política da prisão e da morte, sendo comum ações policiais que matam, numa só operação, dezenas de indivíduos. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, em apenas os primeiros meses da atual gestão do governo estadual, acumulam-se 180 mortes, em números oficiais. Dia 23 passado, a polícia tendo levado à morte 11 pessoas, numa única operação em uma favela da capital do estado.

O Estado de espetáculos e letal convém a governantes omissos, negligentes e descomprometidos, a uma sociedade bestializada pela vontade de ver “bandido atrás das grades” ou “bandido morto” e a organizações criminosas desejosas de sua continuidade e expansão. Governantes eleitos para a administração pública, mas que aos cargos chegam sem ideias, projetos, revelando descuido ou desdém para com o governo político-administrativo dos estados e cidades, mas que se permitem indefinidamente reversar-se em cargos, porém, na inatividade. Sociedade de desigualdades, violenta e perversa que não admite qualquer modificação em suas estruturas, instituições e relações, cultuadora de opressões, discriminações e exclusões, tornando-se o paraíso para alguns poucos e o inferno para todos os demais. Organizações criminosas que persistem com seus negócios, obtendo, cada vez mais, o domínio de setores inteiros da sociedade e, cada vez mais também, sofisticando-se até tornar-se elite empresarial e política.

            Nos acontecimentos recentes no RN, vimos como o Estado do espetáculo e letal funciona também para tentar silenciar e invalidar as demandas de prisioneiros, negando-lhes o direito de reivindicar condições dignas nos cárceres do país. Não se tratou de ardil da facção que assumiu coordenar as ações no RN trazer a público denúncias e reivindicações em relação às condições a que os prisioneiros dos cárceres estaduais estão submetidos. Órgão federal produziu relatório de denúncias sobre violações de direitos nos cárceres do estado e o que nele é denunciado repete-se nos cárceres de outros estados: contínuos maus-tratos aplicados a homens e mulheres nos presídios, em práticas de torturas, submissão a humilhações e vexações, violências diárias praticadas com sadismo, por agentes penitenciários e administradores, contra pessoas indefesas, pois já dominadas na situação de cárcere. E abundam pesquisas e relatórios que comprovam o descuido das prisões, sem que nelas existam cuidados médicos, odontológicos, bibliotecas, oficinas de trabalho, celas que permitam a reclusão digna, alimentação adequada etc. Os cárceres brasileiros são conhecidos por sua superlotação e insalubridade: são ambientes de proliferação de tuberculose, doenças de pele e aids. Em 2017, fiz pesquisa que chamei “Vidas no cárcere”, com estudantes da graduação da UFRN, e pude constatar diretamente o que outras pesquisas também demonstram: as más condições das prisões, a superlotação e os maus-tratos contribuem para o aumento das violações dos direitos humanos dentro das prisões, que mais não são que prolongamento das violações a que esses mesmos indivíduos foram submetidos em suas trajetórias desamparadas, ermas, incertas.

O Estado e seus poderes e a sociedade não podem mais continuar a tentar silenciar e invalidar as vozes que gritam das prisões pela ideia que são gritos de indivíduos de má-índole, criminosos perigosos, que apenas merecem ser violentamente castigados, como se as sanções legais previstas para atos que contrariam a lei não fossem sanções contra o ato delituoso mas previsões de imposição de humilhação, sofrimento e maus-tratos aos que entram em conflito com a lei.  

Se nossas sociedades teimam em não admitir a inumanidade das prisões (e quaisquer que sejam e em qualquer parte) e não aceitam pensar sua abolição, e se, até aqui, insistem em mantê-las, ainda todo o fracasso retumbante da pena de prisão, que, até quando perdurem, pratique-se o que as próprias leis prescrevem, assegurando dignidade aos que estão submetidos às penas privativas de liberdade nos cárceres.

O Brasil é o quarto país que mais prende no mundo atualmente e, hoje, detém a terceira população carcerária mundial, que já ultrapassa 11 milhões de pessoas. Tão grande número de seres humanos em situação de reclusão em prisões nunca existiu em nenhuma época ou sociedade. E, todavia, nada efetivamente mudou com relação ao chamado “aumento da criminalidade”. Nem no Brasil nem no mundo. O modelo de Estado repressivo e penal, sobretudo praticado nas últimas décadas, em toda parte, ganhou do sociólogo francês Loic Wacquant o nome de “Estado-penitenciário”, tal é sua “bulimia carcerária”, isto é, o apetite voraz por conduzir pessoas às prisões. Mas, como também denuncia o autor, modelo que surge simultaneamente ao enfraquecimento operado do Estado de proteção social, o Estado que cuida(ria) dos desvalidos produzidos nas desigualdades sociais de todo tipo. Estas que conservadores e reacionários agem para manter, sentindo-se atacados quando direitos são questionados e a cidadania é reivindicada como condição de todos e não exista como privilégio de certas classes.

Espetacularização e letalidade do Estado no âmbito das políticas de segurança pública escoram-se na inatividade de governantes e autoridades de Estado em promover políticas próprias para o setor, como igualmente no descompromisso em promover, com mais a sociedade, políticas de reforma de suas estruturas e instituições que correspondam a novas condições de participação social de todos, nas quais não se tenha a negação de direitos e oportunidades igualitárias. Negação experimentada por segmentos inteiros de nossas sociedades, cujo efeito visível é o desinteresse de tantos em colaborar e participar da vida social sob suas normas, criando eles próprios as suas, em associações diversas, mas no desvalor de suas próprias vidas e da vida dos outros, até ao ponto da participação em bandos, milícias, facções criminosas, embora acreditando atuarem para darem a si o existir, por alguma via, ainda que tortuosa e cruelmente trágica.

Carta Potiguar

Conselho Editorial

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