Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 10 de dezembro de 2021

O patinho feio era um cisne negro

postado por Joao Paulo Rodrigues

Zé contava com 25 anos quando transou pela primeira vez. A segunda transa só veio após cinco anos. Ele era tão inexperiente, que não conseguiu nem mesmo gozar em sua primeira relação sexual. A moça estranhou, profundamente, o fato de ele ter batido uma punheta antes de ir ao cabaré.

Apesar de estar no limiar da primeira juventude, Zé não tinha experiência alguma com o amor. Cá entre nós, há algo nele que me lembra o Sidarta de Hesse.

 Quando criança era considerado muito ‘feinho’ pelas moças da cidade onde morava. Salvo engano de minha parte, ele nunca beijou uma moça de sua cidade. Sempre solitário, acostumou-se à sua solidão. A bem da verdade, estar só não era motivo de incômodo, afinal – até ali –, aquela era sua sina. Sua vida se resumia às leituras, apreciação de músicas e a prosas junto aos seus amigos – estes também solitários.

Ao crescer, Zé saiu de seu lugar de origem e foi para a cidade grande. Lá descobriu que não precisava limitar-se à prática do onanismo. Descobriu que havia muitas pessoas no mundo e que talvez alguma garota pudesse gostar dele, afinal, cria ele, sua falta de beleza poderia ser compensada pelos seus atributos intelectuais, que, notadamente, sempre estiveram em alto relevo. Coitado! Mal sabia que o racismo não conhece limites geográficos!

É fato que na faculdade sua vida mudou. Conheceu um monte de pessoas interessantes, cujas vivências ajudaram-no a compreender que há diversas formas de amar, mas ainda não entendia por que não era amado.

Cansado de esperar por uma ‘relação sexual espontânea’ v sabe deus o que isso significa! – , decidiu ir a um puteiro. Sabia que o erotismo nada tinha a ver com sentimento, porém, já tinha desistido de ser amado – pobre rapaz, era tão jovem ainda; confesso que senti dó dele, ao ouvir essa história pela primeira vez.

Eu disse, no início, que Zé se masturbara antes de encontrar o amor. A moça riu dele, naturalmente, quando soube que ele tinha gasto uma grana nessa aventura sexual e nem ao menos tinha gozado. De acordo com ele – e eu acredito –, ela até que tentou fazer com que ele chegasse ao orgasmo, mas, ao que parece – digo eu –, ele exagerou na punheta naquela vez.

Zé me disse que não se arrependeu. Reconheceu que fez algo estúpido, mas não sentiu remorso – lembro-me de ele ter dito que o fato de ele ter tocado em uma mulher, pela primeira, vez já pagava a noite.

Eu disse que Zé não nunca ‘ficara’ com alguém sua cidade, o que não significa que ele nunca tenha beijado alguém. Acho que ele beijou – disseram-me os antigos amigos – um ou duas moças antes de se mudar de sua cidade.

Apesar de ter realizado o desejo de não morrer virgem, sua solidão continuava sendo sua insígnia.

A solidão que ele era indiferente na adolescência começou a incomodá-lo. Sim, ele percebeu que a cidade grande era um microcosmo do que ele vivia. Digo, ele notou que continuava só; nenhuma mulher se interessava por ele, apesar de ter uma boa conversa, apesar de ser tão inteligente – é importante registrar que mesmo com essa inteligência toda, ele não se deu conta de que ele carregava a marca de Caim –, ele era até ‘bonitinho’ – que no português popular quer dizer: feio arrumadinho.

O tempo passou e o amor não veio.

Conheceu uma moça que abalou suas estruturas psicológicas. Apensar de ser quase adulto, sentiu emoções nunca antes catalogadas. Ele estava apaixonado! Apareceu, finalmente, uma mulher que aparentava gostar dele. Foi por essa época que transou pela segunda vez.

Se por carência eu não, se por dependência emocional também não sei, sei apenas que Zé se fudei nessa relação – não, ele não praticou autofelação… permitam-me um gracejo.

Sua relação com essa moça durou duas semanas, mas sua paixão perdurou por três anos – sim, Zé é afetadão, eu já disse isso a ele e diversas vezes, creia; Renato Russo era um ser feliz perto dele!

Zé nunca teve a autoestima baixa, porém, sempre entendeu que ele era visto como um patinho feio. Porém, as muitas leituras que nutra fez com que ele entendesse que – lá vem Sartre – não importa o que o mundo pensa de nós, mas sim o que a fazemos com o que o pensam de nós.

Ele gostava de pensar que era um cisne, como na historinha que todos conhecem muito bem – ele só não observou que era, no máximo, um cisne negro.

Hoje Zé está bem. Soube que se casou, tem um cachorro e cultiva uma horta – de maconha.

Na qualidade de observador, vejo algumas coisas que Zé não viu à época. Ele nunca se deu conta de que sua ‘feiura’ não era natural. Ele nunca percebeu que sofria racismo.

Não posso criticá-lo. Não são todas as pessoas pretas que entendem que sua estética está encerrada por uma visão de mundo embranquiçada. Poucos de nós percebemos que ainda que tentemos nos tornar brancos, deixemos de ser patinhos feios, tornemo-nos cisnes, ainda continuaremos negros.

O maldito mito da Maldição de Cam diz que os africanos são povos malditos, porque maldita era sua descendência. De acordo com os medievais e agostinianos, somente uma redenção do povo negro pode quebrar as cadeias de sua maldição; é preciso haver a Redenção de Cam e esta, dizem os racistas, dar-se-á apenas através do embranquecimento dos negros – não, eles não são a favor da miscigenação, eles são favoráveis ao exterminação do povo que eles convencionaram a chamar de negro.

Zé não sabia – e ainda não sabe – que era um descente de Cam; ele não sabia que o tratavam feito um cão porque ele era negro – talvez não saiba disso até hoje!

Zé nunca foi feio, seu maior defeito – sem aspas, mas com ironia – é ser negro.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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