Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 17 de dezembro de 2023

As Universidades, o mau corporativismo e as práticas de assédio moral e sexual

postado por Carta Potiguar

Alipio De Sousa Filho,
Professor e Diretor do Instituto Humanitas UFRN

Como em outras instituições públicas brasileiras, os dirigentes das universidades têm tomado a acertada decisão de elaborarem e aplicarem normas relativas às práticas de assédio moral e sexual no âmbito das relações envolvendo professores, estudantes e funcionários. Já estava em tempo, pois essas são práticas recorrentes, datam de muito, e, por muitíssimo tempo, foram invisibilizadas pelo silenciamento de suas vítimas, pelas técnicas da chantagem ou da imposição do medo, e pela impunidade daqueles e daquelas que, embora recorrentes em seus atos, encontravam o apoio de cúmplices entre os chamados “colegas” ou beneficiaram-se da inação de eventuais dirigentes em atos de leniência, improbidade, prevaricação.

Assim, o tempo é outro, mas muitos resistem às mudanças e alguns reivindicam continuar agindo como sempre agiram e, por isso, sentem-se contrariados quando confrontados com normas e responsabilizações às quais não podem fugir por seus próprios atos.

Nas universidades, é conhecido o assunto de um mau corporativismo, principalmente entre professores, que funciona como cumplicidade em relação a descumprimentos de exigências básicas do trabalho docente, como dar aulas com qualidade, cumprir programas dos componentes curriculares, realizar pesquisa e extensão que mereçam o nome. É bem conhecido como, por mau corporativismo, alguns mantêm arremedos de ensino, pesquisa e extensão que, se seriamente avaliados, não teriam aprovação. Há ainda a cumplicidade com ausências irregulares, por períodos que variam entre um dia ou dias que chegam a superar semanas, para “viagens”, “safaris”, “cruzeiros”, em plena vigência do semestre letivo, com ou sem conhecimento de chefes; professores entregando suas turmas a estagiários de pós-graduação (o chamado “estágio docência” dos bolsistas de CAPES e CNPq); professores transformando estudantes em “monitores” de disciplinas por estes ainda não cursadas, para o desempenho de tarefas que não lhes cabem; “licenças médicas” questionáveis em situações nas quais funcionários, docentes e estudantes encontram-se em face de apurações de responsabilizações em processos administrativos; entre outros multiplicáveis exemplos.

O mau corporativismo nas universidades tem também servido para proteger assediadores e abusadores em práticas de assédio e violência psicológica e moral a estudantes, entre os quais, mesmo até aqueles estudantes com necessidades específicas – os alunos NEE, conforme especificações institucionais –; proteger assediadores sexuais, verdadeiros oportunistas, que, em geral, buscam explorar condições individuais de fragilidade das pessoas que tomam para objeto de suas perversões (nos anos 1990 e 2000, sem os aperfeiçoamentos dos processos de seleção para a pós-graduação existentes hoje, casos ocorreram de professores que “trocavam” vagas para o ingresso de estudantes por “favores sexuais”); proteger praticantes contumazes de irregularidades nas instituições nas quais trabalham, como práticas de fraudes em processos, constrangimentos e ameaças a colegas, estudantes e funcionários, com atos de assédio moral ou sexual, falsificação de identidade por meio de mensagens de e-mails pretensamente anônimas, de cunho violento, com ofensas morais aos seus destinatários.

Fácil concluir: o mau corporativismo é um mal para as universidades e para todas as instituições públicas. Permite conservar o mau funcionário e o mau professor (certos casos para o quais, a bem do serviço público, a demissão deve ser a medida), e perpetua práticas que não podem ser admitidas, entre elas, as práticas de violência psicológica e moral tipificadas como assédio. Por isso, torna-se importante a aprovação de normas que busquem enfrentar e combater as diversas formas de assédio nas instituições públicas, as universidades entre elas, para que um mau corporativismo não continue operando com êxito no abafamento de casos, impedindo suas apurações.

Mas, somente se torna compreensível a eficácia do mau corporativismo nos casos de assédio moral ou sexual e outras violências psicológicas e morais, reconhecendo-se a legião de cúmplices e apoiadores dos assediadores, violentadores e violadores de normas institucionais e morais. Nessa legião, não há apenas cumplicidade do silêncio, há também uma cumplicidade ativa: é aquela dos que se disfarçam, por falsas convicções em fraudes éticas, em oponentes do “punitivismo” na instituição. Desavergonhadamente, e de modo oportunista (pois a crítica ao punitivismo que, hoje, fazemos é bem de outra ordem!), chamam de “punitivismo” o que, de fato, é a responsabilização daquelas e daquelas que não podem continuar à solta, fazendo o que bem entendem nas universidades e nas demais instituições públicas, como se não tivessem que agir conforme normas, leis, códigos morais.

Há ainda algo deplorável na ação desses cúmplices e apoiadores ativos dos assediadores e violadores: buscar dirigentes dessas instituições para intercederem a favor dos que são denunciados, pelos canais legais, por suas vítimas. Como se acreditassem que dirigentes se tornam, no desempenho de suas funções, idiotas sociais que não enxergam quem são e onde estão as vítimas e quem são e onde estão os assediadores e violadores. Ainda que sabendo muito bem que todos aqueles que desempenham funções de gestão nas universidades e outras instituições públicas têm o dever de cumprir normas e leis, gerais ou específicas, ainda assim os procuram para pedir o indevido. E assumem o vergonhoso papel de produtores de falsas narrativas de suspeição de atos corretos de gestão e de falsas acusações de “perseguição” a assediadores e violadores, por parte de quem age por dever institucional e ético, por meio de atos administrativos legais, exatamente destinados a apurar responsabilizações daqueles que
erradamente atuam por afronta ou descumprimento de normas.

Mas aqueles que praticam assédio moral ou sexual e/ou constantes irregularidades e ilícitos no trabalho nas universidades, e que buscam fazer crer, juntamente com seus apoiadores e cúmplices, que são “perseguidos”, quando são denunciados pelos canais legais e passam a responder a processos, apenas realizam a operação mais conhecida do discurso ideológico de ocultamento da realidade: a transformação do violentado em violentador. Assim, são as vítimas que denunciam o assédio e as violências a que são submetidas que são mentirosas, caluniadoras, perseguidoras. São os dirigentes da instituição, em seus vários níveis, ao determinarem a apuração de responsabilidades, que são perseguidores. De tal modo que o violentador é que passa a ser uma vítima de todos, mas nunca o/a responsável por seus próprios atos, recorrentes, conhecidos, que carregam consigo aonde vão.

Há ainda o chocante fato de professores violentadores e assediadores e seus cúmplices incapacitando estudantes e funcionários denunciantes, e até mesmo também professores vítimas de agressões que denunciam o que sofrem, afirmando serem estes manipulados por outrem, com a velha e conhecida fórmula dos assediadores, segundo a qual, “não sendo verdadeiros” os fatos denunciados, “há alguém por trás” daqueles que denunciam. Isto é, negacionistas da verdade, buscam retirar autonomia, agência, capacidade e potência de estudantes, funcionários e professores que se decidem corajosamente por realizar denúncias necessárias.

Incapazes da hermenêutica de si (para o exame de consciência de suas personalidades doentias) e do cuidado ético de si (para transformações morais de si), obrigatórios no viver coletivo, os assediadores e violadores atuam, todavia, decididos a acusar os outros do mundo de “perseguidores”, porque toda Lei, que não seja a “lei” que eles criaram para si e a ela obedecem, e que visam impor a todos, enxergam não como Lei da relação com os demais, mas como uma ordem persecutória. Afinal, é o delírio do risco do fim de um mundo privado de quem não aceita que vive num mundo com outros. Mundo que, para a coabitação de todos, cria e recria leis. Sempre requeríveis, embora nunca eternas, como se sabe. Mas isso assediadores e violadores contumazes não querem saber! Será que igualmente seus cúmplices e apoiadores?

Carta Potiguar

Conselho Editorial

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