Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 9 de setembro de 2021

O horror do isolamento e da rotina em Vivarium

postado por Mario Rasec

Em tempos de pandemia, poucos filmes foram tão certeiros em interpretar alguns dos sentimentos de quem teve a “sorte” e o bom senso de se isolar do que Vivarium (2020), mesmo que a pandemia esteja longe de ser seu tema, a situação claustrofóbica e surreal dos seus protagonistas é a metáfora perfeita desses dias estranhos e horríveis. Vivarium parece uma mistura de David Lynch com O Anjo Exterminador (1962) de Luis Buñuel.

Aviso: O texto abaixo pode conter pequenos spoilers.

Um casal procura uma casa para morarem juntos, um estranho corretor de imóveis os leva para conhecer um conjunto habitacional onde tudo é estritamente igual, até mesmo as nuvens denunciam essa simetria irreal. Se o comportamento do corretor já nos causa estranheza, mais ainda tudo se torna estranho quando o casal entra na casa. Aos poucos, o sonho da casa do casal se torna um pesadelo colorido, uma perfeição opressora que não os permite sair. O bairro se torna um labirinto. É impossível saber como sair, seja dando voltas com o carro pelas ruas com casas que são cópias perfeitas da sua própria casa ou pulando muros das casas vizinhas. Não demora muito para o casal descobrir que naquele labirinto residencial não há vizinhos, somente uma imensidão de casas perfeitamente semelhantes e vazias.

Assim como os passarinhos na cena de abertura, o casal fica preso nessa espécie de viveiro (como o próprio título sugere). Nada lhes falta, alimentação, conforto… somente a liberdade. E isto, como sabemos, faz toda a diferença.

De certa forma, Vivarium lembra O Anjo Exterminador (1962) de Luis Buñuel. Mas no caso deste, a saída estava à vista dos enclausurados. Aqui não. Há ruas, várias ruas, mas todas elas levam as mesmas ruas e nunca a entrada ou saída desse estranho conjunto habitacional. O que resta, ao menos para a personagem Tom (Jesse Eisenberg) é cavar um buraco sem fim, a princípio em busca de uma saída (uma saída para baixo que talvez possa aludir a depressão e vício), mas também como uma atividade que possa lhe dar uma razão para viver, por mais frágil que se mostre a esperança de que aquele esforço trará o resultado desejado. Essa laboriosa tarefa, que faz de Tom praticamente um Sísifo às avessas (afinal, enquanto no mito de Sísifo este sobe a montanha, Tom desce às profundezas), ao menos quebra um pouco da perfeição daquele monótono cenário. A terra que se acumula, a sujeira nas suas roupas. Para um mundo preso a uma perfeição opressora, o ato de cavar de Tom parece ser seu protesto contra o sistema que, na nossa vida, nos oprime e nos explora, e, por causa da nossa impotência diante da tal força (seja ela representada por um governo, o Estado e por poderosas corporações que cometem tantas atrocidades contra o impotente cidadão e que abafam nossas vozes) nada nos resta, a não ser trabalharmos até morrer, pois subir no telhado, queimar a casa ou gritar, como fazem os protagonistas, de nada adianta. Nada arranha a superfície fria do sistema, nada afeta a programação, nada o desvia do projeto estabelecido dos que detêm o poder naquele mundo. O destino do casal já foi traçado, assim como sua única função. É um universo burocrático, mas com uma burocracia eficiente cujas ações de rebeldia dos que estão encarcerados naquele mundo são previstas e contornadas com indiferença.

A chegada da “criança” parece em um momento quebrar a falta de novidade e, ao menos para a Gemma (Imogen Poots), cria o inesperado objetivo de cuidar de alguém mais frágil, protegendo até mesmo da ira do companheiro. Mas como tudo naquele mundo (ou no nosso), é apenas uma ilusão, mais uma engrenagem num sistema que não pode parar de moê-los até que todo o suco das suas vidas seja consumido, até que a utilidade do casal perca a finalidade. Pois, lhes é permitido viver apenas para cumprir sua função dentro do sistema. Enquanto forem necessários aos seres que comandam aquele mundo, certo conforto e alimentação não lhes faltará. Terminada essa função, eles podem ser descartados como tantos outros na nossa própria sociedade.

Em síntese, Vivarium é isso, uma metáfora do nosso mundo. Mas, com a pandemia e o isolamento que muitos se veem obrigados a fazer para poupar suas próprias vidas e a dos seus semelhantes e entes queridos, o filme adquire mais uma camada. Afinal, estamos convivendo com tantos absurdos tão inacreditáveis como a realidade em que vivem os protagonistas. Assim como eles, parece que nos acostumamos com a loucura diária, coisas que jamais aceitaríamos em tempos atrás (ver as declarações e o comportamento do atual presidente e as inúmeras mortes causadas pela Covid-19) são tratadas com normalidade, como parte da paisagem; assim como são as nuvens de algodão doce, tão oníricas como numa pintura no quarto de uma criança ou no cenário de uma peça infantil, sobre as cabeças dos protagonistas. Vivarium é esse pesadelo que parece não ter fim que tantos vivem durante a pandemia.

Assim como nesses tempos, Vivarium mostra que o horror se encontra nessa nova normalidade, na rotina de absurdos, tragédias e desesperança em que vivemos em 2020 e 2021. Principalmente no Brasil, cujos dias estão sendo regidos por um governo com motivações tão ocultas quanto as motivações por trás dos seres que dominam o mundo onde os protagonistas do filme estão presos. Um governo com um projeto perverso onde nossas vidas são tão descartáveis como as vidas dos protagonistas ou dos passarinhos que caem da árvore na primeira cena do filme.

Diretor: Lorcan Finnegan Roteiro: Garret Shanley Elenco: Jesse Eisenberg, Imogen Poots, Jonathan Aris, Eanna Hardwicke Nacionalidade: Irlanda, Bélgica, EUA

Mario Rasec

Designer gráfico, artista visual, ilustrador e roteirista de HQs. Autor de Os Black (quadrinho de humor) e de outras publicações.

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