Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 7 de janeiro de 2022

A menina e o chuveiro

postado por Joao Paulo Rodrigues

Água nunca foi seu problema, o chuveiro, sim. Se para chamar a atenção eu não sei, se por hidrofobia seletiva eu também não o sei, estou apenas ciente de que a menina agia como se fosse acometida de aquafobia. Todavia, a verdade é ela era uma aquafílica – não sei se é neologismo, se sim, bom para mim! –, desde que a água não caia do chuveiro, claro.

Piscina, mar e talvez até oceano, tudo que se relacionava à água caía nas graças da menina, menos o chuveiro. Ao observar essa peculiaridade, pus-me a investigar as origens desse fenômeno, como se Sherlock freudiano fosse.

Sua aversão ao chuveiro era tamanha, que não titubeava em criar um espetáculo na hora de tomar banho:

— Princesa, vá tomar banho!

— Já vou, mãe.

— Vá agora. Eu estou mandando!

— Oh, mãe… Oh, meu deus, por que eu passo por isso?

— Avie, logo, menina…

Como se fosse um mantra ou mesmo uma oração, essa ladainha se repetia todo santo dia, ao menos por duas vezes. E como eu sei disso? Bem, nós éramos vizinhos; as paredes que dividiam nossas casas eram feitas de seda de celulose.

Toda manhã se ouvia os prantos da menina, que se recusava a tomar banho sem relutar. Toda santa noite ouvia-se o debate acalorado entre mãe e filha acerca do bendito banho noturno.

Eu perguntava-me se ela odiava mesmo tomar banho. Apesar de não ser psicólogo, eu já tinha lido Roberto Shinyashiki; sabia que todos nós buscamos suprir nossas carícias essenciais de todas as formas possíveis. Digo, pensei que tivesse a ver com querer chamar a atenção da mãe, a fim de suprir alguma carícia essencial comum às crianças – ela tinha 6 anos à época.

Porém, em razão de meu espírito científico bachelardiano, decidi ir além das aparências que nos ofertam respostas simples e fáceis. Ao investigar um pouco mais…. Ah, antes que o leitor me entenda mal, eu não sou voyeur da vida alheia – leia-se: fofoqueiro –, na verdade, eu sou mesmo um desocupando.

Ao investigar um pouco mais, percebi que a família sempre ia à praia e, de quando em vez, ao nos juntar no terreiro, a menina compartilhava comigo e minha filha o quão bom foi estar na piscina da tia, no fim de semana. Então, como um gênio que sou, interpretei que não se tratava de medo de água.

Bem, se as hipóteses da carícia essencial e da aquafobia foram descartadas, qual seria a resposta para tanto horror ao chuveiro? Impulsionado pelo espírito romanesco, pus-me a perquirir um pouco mais sobre aquela intrigante relação belicosa entre a menina e o chuveiro.

Meus pensamentos sobre esse enigma foram interrompidos por uma necessidade prática: eu precisava de um alicate. Fui até à casa vizinha pedir emprestado a ferramenta de Seu João . Lá eu deparei-me com uma cena elucidativa: ao presenciar mais um debate sobre um banho ao meio-dia, que foi interrompido assim que eu apareci no portão, vi a gata Xana olhando para a menina e caminhar em direção ao fundo da cozinha; ela ficou olhando para algo à sua esquerda.  Aquela cena me chamou atenção. Sem titubear, sob o pretexto da curiosidade científica – vulgo intrometimento –, perguntei a sua mãe para onde Xana olhava; ela disse-me que ali ficava o banheiro.

Bingo! Eu sabia que não era obsessão doentia de minha parte. A gata também está a par da questão. Na verdade – aqui são elucubrações e divagações de minha parte –, parece mesmo que ela estava cansada daquele rito. Ao ver a menina lacrimejar, apontou-lhe o caminho do banheiro, como quem diz: “vamos, tome banho, não é tão ruim assim”.

Eu disse que a ação de Xana foi elucidativa, certo? Então, foi e não foi. Na verdade, saber que a gata estava tentando ajudar a menina a parar de ter horror ao chuveiro não ajudou em muita coisa. Não houve elucidação alguma!

Você pode estar se perguntando: “não seria mais fácil perguntar à menina o porquê de ela não gostar de tomar banho de chuveiro?”. Foi exatamente por muito perguntar e resposta não obter, que resolvi gastar meu tempo investigando essa questão da vida prática – sim, antigamente eu tinha mais tempo que hoje, larguei essa atividade ociosa.

Ela cresceu e nunca mais falamos disso. Eu, claro, por falta de resposta, deixei a questão de lado e pus-me perquirir acerca do por que Dragão, meu amado cachorro, gosta de praticar slackline nos varais aqui de casa, mas isso é história para outra cachimbada.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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