Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 15 de agosto de 2021

“O grande cuidado” na Rua do Assossego

postado por Joao Paulo Rodrigues

Minha rua é fonte de sossego e cama para o corpo. Ela é pura pelúcia. As calçadas têm camurças e os portões têm algodões. Juro que é verdade!

 As pedras são revestidas por fina seda. Tudo é brisado. O Sol sempre fresco e a Lua sempre inteira. Há lençóis revestindo cada piso e portão. Os muros são de algodão.

O fim de tarde é catártico. Atrai moradores e transeuntes. Hoje mesmo vi dois deitados na calçada, comigo, três.

Minha rua é meu Céu, quero dizer, nosso Paraíso. Eu não conheço uma pessoa sequer da cidade que não tenha se deitado, ao menos uma vez, no chão de minha rua. Parece que existe um campo magnético que atrai a todos.

Quando eu digo que magnetiza a todos, quero dizer que os ipês são mais floridos e felizes, os gatos e cães são mais alegres, as pessoas são gentis. A harmonia reina em minha rua

É como se todos que se achegassem a ela exalassem doçuras e amor.

Mas sabe, não é que não haja um barulho aqui e ali. É que há sossego. É algo que mal sei explicar. O silêncio da noite é tão reconfortante quanto a sombra do dia.

Não sei, acho que estou emocionado.

Alguns me disseram que minha rua é cheia de mistério. Disseram-me, e eu creio, que uma vez a cada doze meses ocorre um fenômeno chamado “O grande cuidado”. Disseram-me que se trata de uma atmosfera amorosa que perfuma o ambiente. Pelo que entendi, todos que passam pela Rua do Assossego nesse período podem fazer um pedido. Se “O grande cuidado” entender que o que se pede é algo verdadeira e genuinamente bom, prontamente realiza a solicitação.

Pessoa me juraram que foram atendidas por esse tal “O grande cuidado”. Disseram-me que sentiram vontade de fazer o bem após fazerem seus pedidos, antes mesmo de os realizar.

Por ter uma tradição cientificista, pus-me a pensar ceticamente sobre as possibilidades de haver alguma realidade no que me diziam. Todavia, “contra realidade não há ceticismo que se sustente”, pensei comigo mesmo. Lembrei-me de que minha rua é realmente tranquila, sossegada. Aquilo me parecia um fenômeno ímpar. De repente já não me parecia tão custoso acreditar nesse tal de “O grande cuidado”.

Quando ficamos mais velhos, passamos a ser mais tolerantes às ideias e crenças alheias. A homeopatia ganha status de realidade semelhante às manifestações dos guardiões do Benin. É como se a até a aposta pascalina fizesse sentido ou mesmo fosse digna de respeito.

De repente me ocorreu a possibilidade de eu estar sentindo imperturbabilidade na alma. Não deve ser uma manifestação de sífilis neitzscheana, creio.

Bem, independentemente de esse “O grande cuidado” existir ou não, minha rua é sossegada e isso me faz muito bem. Se é atarixia, pouco me importa, se é delírio, que seja.

Joao Paulo Rodrigues

Graduado, especialista, mestre e doutorando em Filosofia (UFRN). Especializando em Literatura e Ensino (IFRN) e curioso pela ciência da grafodocumentoscopia.

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