Rio Grande do Norte, sábado, 27 de abril de 2024

Carta Potiguar - uma alternativa crítica

publicado em 17 de abril de 2023

Trabalho escravo no Brasil: Um atentado à dignidade humana

postado por Carta Potiguar

Por Homero Costa

135 anos depois do fim oficial da escravidão no país, ainda se encontram condições de
trabalho análogo a escravidão. Em 2022 segundo dados da Secretaria de Inspeção do
Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego 2.575 trabalhadores e trabalhadoras
foram resgatados de condições análogas às de escravo, que correspondeu a um terço a
mais que em 2021. Do total 35 eram crianças e adolescentes. Mesmo com toda
precariedade e louvável esforço e compromisso de fiscais do trabalho, do Grupo Especial
de Fiscalização Móvel (46% dos cargos de auditor fiscal do trabalho estão vagos, e não
são realizados concursos desde 2013) e mesmo assim foram realizadas 462 fiscalizações
que resultaram em mais de R$ 8 milhões em verbas salariais e rescisórias por parte das
empresas que utilizavam trabalho escravo. Foram encontradas práticas de trabalho
análogo ao de escravo em 17 estados. Entre os 20 estados fiscalizados, apenas Alagoas,
Amazonas e Amapá não registraram casos de escravidão contemporânea.

(https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-01/trabalho-
escravo-2575-pessoas-foram-resgatadas-em-2022).

Em 2023, até o mês de março, já havia sido contabilizados 918 casos. Um aumento de
124% em relação ao mesmo período de 2022. Em 2021 houve 1.937 resgates, o maior
desde 2013 um crescimento de 106% em relação a 2020.
O fato é que nos últimos anos houve um expressivo aumento de pessoas trabalhando
em situação análoga à escravidão no Brasil, tanto em centros urbanos (construção civil,
indústria têxtil etc.,) como no campo (lavouras de cana-de-açúcar, pecuária, fumo,
cultivo de carvão vegetal, mineração, vinícolas, entre outras atividades).
Nesse sentido, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do
Senado Federal realizou duas audiências públicas, nos dias 10 e 11 de abril de 2023 para

debater o projeto de lei 5.970 /2019 de iniciativa do senador Randolfe Rodrigues (Rede-
AP), que aguarda votação do plenário (tem como relator o senador Fabiano Contarato –

PT/ES) e que regulamenta a expropriação de propriedades urbanas e rurais em que seja
constatada a exploração de trabalho em condição análoga à escravidão.

É importante a informação de que em 2014 foi promulgada a Emenda Constitucional 81,
até agora pendente de regulamentação, que instituiu a obrigação do poder público de
buscar a desapropriação e conversão de bens destinados à exploração do trabalho
escravo em prol dos trabalhadores resgatados, ou seja, prevê a expropriação de
propriedade urbana e rural em que for constatada a exploração de trabalho em
condições análogas à escravidão e a sua destinação à reforma agrária (no caso das
rurais), ou aos programas de habitação popular, nos casos urbanos. Os trabalhadores
resgatados seriam incluídos com prioridade em assentamentos ou nos programas
habitacionais. Mas não é o que aconteceu desde então.
Na realidade, a discussão no Congresso Nacional sobre a expropriação de terras assim
como punição a quem pratica trabalho escravo é anterior à emenda de 2014. Pelo
menos desde o fim da ditadura há discussões e propostas nesse sentido, como, ainda na
década de 1990, com a Lei da Reforma Agrária (Lei 8.629), que não avançou (sequer foi
votada) especialmente pela força numérica e de pressão da chamada da bancada
ruralista.
É inegável, especialmente para os que combatem o trabalho escravo, a aprovação da
Emenda de 2014 e não por acaso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
recomendou ao país que a regulamentasse, considerada de fundamental importância
para o enfrentamento efetivo do trabalho escravo, que está em sintonia com as
convenções da OIT [Organização Internacional do Trabalho] que tratam do tema e ainda
que o país ratifique o protocolo adicional da Convenção 29 da OIT e o ponha em prática
(O protocolo adicional trata das cadeias produtivas e das cadeias de fornecimento, em
defesa dos trabalhadores).
E também não por acaso, desde o início do seu governo, em 2019 Bolsonaro afirmou
que a emenda de 2014 não seria aprovada e justificou que o empregador “não quer
maldade para o seu funcionário nem quer escravizá-lo (…) Isso não existe. Pode ser que
exista na cabeça de uma minoria insignificante, aí tem que ser combatido”.
E de fato não houve qualquer iniciativa nesse sentido, ao contrário: o que se verificou
foi a diminuição de fiscalização em lugares onde havia denúncias de trabalho análogo á

escravidão, menos condenações aos que foram flagrados praticando trabalho escravo
etc.

As audiências de abril de 2023 também debateram o Estatuto do Trabalho, com foco na
discussão da lei da terceirização da chamada atividade-fim pelas empresas. Sobre isso o
presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH), senador Paulo Paim (PT-RS),
defendeu a sua revogação, afirmando que “A terceirização potencializa o trabalho
escravo, a exploração da mão de obra e a precarização. Cabe a nós revogar isso. De cada
dez trabalhadores resgatados em condição análoga à escravidão, nove são
terceirizados”. De fato, como foi exemplificado com um caso recente (fevereiro de
2023), três vinícolas no Rio Grande do Sul que utilizavam trabalhadores em condição
análoga à escravidão na colheita das uvas, o faziam por meio de uma empresa
terceirizada, assim como de outros exemplos anteriores.
Entre os presentes na audiência pública de abril de 2023, estiveram, entre outros, o
presidente da CONTAG, Aristides Santos, o presidente da CONTAR, Gabriel Bezerra, o
jornalista Leonardo Sakamoto (online), além de representantes do poder Judiciário e o
defensor público federal, Eduardo Nunes de Queiroz , o diretor do Sindicato Nacional
dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), Renato Bignami e o presidente do Sindicato
Nacional dos Peritos Federais Agrários (SindPFA), João Daldegan Sobrinho.
Segundo o presidente da Contag, várias ações já foram realizadas no combate ao
trabalho escravo, como a criação de portal para denúncias, e o acompanhamento da
tramitação no Congresso de projetos de lei, como o do senador Randolfe Rodrigues,
integralmente apoiado pela Contag. Para ele, não se pode nem se deve tolerar a
existência de trabalho análogo à escravidão, que está além da questão trabalhista,
envolvendo os direitos humanos e a dignidade das pessoas e que a desapropriação é
necessária, para resolver a oferta de alimentos e a diminuição dos preços a fim de
garantir a soberania e a segurança alimentar e reforça a necessidade de sua aprovação
porque “Não dá para esperar 10 anos para regulamentar uma lei para combater algo
tão danoso”.

Da mesma forma, o presidente da CONTAR, defendeu a aprovação do PL, informando
ainda que o trabalho escravo esteja tipificado como crime grave e que 60% dos
trabalhadores e trabalhadoras rurais assalariados estão na informalidade, destacou a
necessidade e importância de penalizar as empresas e empregadores, e a ampliação de
fiscais do trabalho e de auditorias. Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas
especialmente no governo Bolsonaro, sem os fiscais do trabalho, com a ajuda da Polícia
Federal “a situação seria pior”.
Nas discussões da audiência pública foi salientada também a importância da revisão de
alguns pontos da reforma trabalhista que contribuíram para enfraquecer o movimento
sindical e precarizar o trabalho rural, por meio da terceirização.
Para o jornalista, cientista político e presidente da ONG Repórter Brasil, Leonardo
Sakamoto, há várias iniciativas da sociedade civil que contribuíram para o
enfrentamento do trabalho escravo, como a lista suja de empresas que foram
comprovadamente condenadas por esta prática, à proibição de acesso a crédito rural
por quem responderem por trabalho escravo, a aprovação da antiga PEC do Trabalho
Escravo, que se tornou a Emenda Constitucional 81 (aprovada no Congresso Nacional
em 2014 depois de muita luta, resistência e comoção), além de leis estaduais e
municipais que combatem o trabalho escravo contemporâneo e destacou a (ainda)
ausência de “uma lei mais forte no Brasil, um marco legal de direitos humanos de
empresas, falta de recursos orçamentários para a fiscalização, assim como de auditores
fiscais em quantidade suficiente e especialmente a falta aplicação de leis e de normas já
aprovadas.
Também esteve presente um representante do recém criado Ministério da Igualdade
Racial, Yuri Silva, diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo. Para ele “O
trabalho análogo à escravidão é uma chaga social, que está entranhada nas relações
humanas e trabalhistas no Brasil, que se relaciona diretamente com a origem escravista
desse país. Cerca de 84% das vítimas desse tipo de crime são de pretos e pardos e quase
60% vem do Nordeste, região mais negra do país” e defendeu a punição a quem
promove trabalho escravo, que ele considera “uma chaga social” diretamente
relacionada à tradição escravista do Brasil e citou o caso das vinícolas de Bento

Gonçalves, no Rio Grande do Sul, afirmando que os negros eram 95% dos resgatados e
que, portanto “Fica evidente que estamos diante de forma moderna de escravidão, que
precisa ser punida para que a chaga do racismo seja enfraquecida e superada”.
Para o Coordenador da Campanha Nacional contra o Trabalho Escravo da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), o frei dominicano Xavier Jean Marie Plassat que há muitos anos
tem de destacado na luta contra o trabalho escravo no Brasil, afirma que as denúncias
de trabalho escravo acumulam-se há mais de duas décadas no país e que só prospera
na invisibilidade (e na impunidade). Para ele, no Brasil, a escravidão não acontece por
acaso, mas em decorrência de discriminação histórica, estrutural “Isso é o DNA do Brasil,
mecanismos de brutalidade que retiram a característica da condição humana. O Brasil
foi um dos últimos países a abolir a escravidão”, e diz que nos últimos 27 anos, a CPT
encontrou mais de 64 mil pessoas em condições de escravidão, sendo um fluxo que se
alimenta e se retroalimenta ano após ano.
O Código Penal [Decreto-Lei 2.848, de 1940] define a condição análoga à de escravo
como crime e como diz o relator do PL 5.970/2019, senador Fabiano Contarato (PT/ES)
trata-se de “crime contra a humanidade, porque viola todos os pactos e tratados
internacionais dos quais o Brasil é signatário. É uma conduta que tem que nos
envergonhar diuturnamente”.
No seu relatório afirma que a expropriação das terras só pode ocorrer pela via judicial,
em ação específica de natureza penal ou trabalhista. “Fica condicionada ao prévio
trânsito em julgado de sentença condenatória por exploração de trabalho em condições
análogas à de escravo”.
O artigo 149 do Código Penal estabelece que o trabalho análogo ao de escravo ocorre
em quatro modalidades, bastando a ocorrência de uma delas para que seja configurado
o crime. São elas: submeter o trabalhador a trabalhos forçados; submeter o trabalhador
a jornadas exaustivas de trabalho; sujeitar o trabalhador a condições degradantes de
trabalho e restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida
contraída com empregador.

Um aspecto que merece ser destacado, ao contrário do que ocorreu no governo
Bolsonaro, é que há hoje o empenho o Ministério do Trabalho e Emprego, com o
ministro Luiz Marinho à frente para acabar com essa prática criminosa e entre as
iniciativas importantes foi a divulgação, no dia 5 de abril de 2023, da atualização da lista
de empregadores flagrados utilizando mão de obra análoga à escravidão. A chamada
lista suja (elaborada duas vezes ao ano, abril e outubro) que contém 289 empregadores
(17 foram retirados em relação à lista anterior) e incluídos 132 novos nomes, entre
pessoas físicas e jurídicas flagradas pela Inspeção do Trabalho.
Para o ministro Luiz Marinho (que esteve pessoalmente no Rio Grande do Sul quando
foram divulgadas informações sobre trabalho escravo em vinícolas): “É muito
importante dar publicidade à lista de empresas que usam trabalho análogo à escravidão
e os que forem flagrados fazendo uso de mão de obra análoga à de escravo, devem ser
devidamente responsabilizados”.
É importante ressaltar que em 2020 o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou
constitucional a criação e a manutenção do Cadastro de Empregadores, confirmando o
entendimento de que a publicação do Cadastro não é sanção, mas “o exercício de
transparência ativa que deve ser exercido pela Administração, em consonância ao
princípio constitucional da publicidade dos atos do poder público.” E que tem
embasamento legal na Lei de Acesso à Informação, Lei no 12.527 de 18 de novembro de
2011, que prevê o direito de acesso à informação, e que os órgãos públicos devem
possibilitar, independentemente de requerimentos, a divulgação de informações de
interesse coletivo ou geral.
O cadastro de chamada lista suja do trabalho escravo foi criado no início do primeiro
governo de Lula em 2003, e reúne empregadores que usam mão de obra em condições
análogas à escravidão e estabelece que quem entra na lista não tem acesso a créditos e
financiamentos por dois anos, além de ser monitorado pelos grupos de fiscalização
móvel. Se constatada reincidência de trabalho escravo, o nome permanece no
documento por mais dois anos.

Há, portanto, um enorme desafio para os que combatem o trabalho escravo no Brasil.
De um lado, o esforço do atual governo em acabar com essa prática criminosa que
atenta contra a dignidade humana, mas sabe que precisa que o Congresso Nacional, que
tem maioria de parlamentares de direita e uma forte bancada ruralista , aprove as Leis
que tramitam, como o PL do senador Randolfe Rodrigues e ao mesmo tempo, sua
existência revela a necessidade de se promover uma ampla e necessária a reforma
agrária para resgatados a partir de terras expropriadas de empregador que explorou o
trabalho escravo, o que é muito difícil ser aprovado pelo Congresso, da mesma forma é
preciso haver punição dos culpados. Um estudo da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico
de Pessoas (CTETP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostrou que dos
2.679 denunciados por trabalho escravo entre 2008 e 2019, apenas 112 (4,2%) foram
condenados em última instância.
Mas nem por isso, se deve desistir. Há muito a ser feito, dentro e fora do
parlamento. Projetos de Lei como o de iniciativa do senador Randolfe Rodrigues é
importante, assim como audiências públicas, mas não bastam para dar um basta no
trabalho escravo no Brasil.

Carta Potiguar

Conselho Editorial

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